sábado, 11 de abril de 2009

Silves e as Tês Tradições do Livro

Martine Stig, Zainab, 2006

Miguel Bruno Duarte propõe, na Leonardo: «Seria desejável que, no âmbito das três tradições orientalistas que habitaram a Península Ibérica, pudesse surgir em Silves, num futuro próximo, uma espécie de comunidade apostada na riqueza espiritual e filosófica da região. Por outras palavras, uma comunidade sem impedimentos de ordem universitária, política ou administrativa, para que tudo fosse levado a bom porto. Tal não significa, porém, que essa comunidade estivesse ausente de todo e qualquer apoio, mas tão-só ciente da sua independência e liberdade espirituais, como, aliás, tão bem entendeu Mestre Almada ao escrever: «Em nome da humanidade inteira, obrigado, Mecenas!»»


Como Álvaro Ribeiro sempre salientou, nunca nos devemos esquecer as três tradições do livro que concorrem para a formação do pensamento português. Acontece em Portugal como acontece, de modo mais lato, no que poderemos designar por tradição peninsular.

É naturalmente importante não esquecer a presença árabe na Península Ibérica ao longo de quase oito séculos, tendo o Reino de Granada caído apenas 1492, às mãos dos Reis Católicos _ talvez mesmo mais às mãos de Isabel que de Fernando, mas não isso quanto agora importa _ e tão prolongada presença não poderia deixar de dar os seus frutos e criar as suas influências, como não deixou.

A presença dos mesmos árabes no território que veio a ser o território continental de Portugal, dada a rapidez da reconquista, não se prolongou senão até meados do séc. XIII, exactamente com a conquista de Silves por D. Afonso III em 1253, não chegando também Beja ou Silves a atingirem o esplendor de Córdova, Toledo ou Granada. Não obstante, a influência árabe, mesmo na Corte, perdurou muito para além desse momento.

Todavia, esmo ainda hoje, se a presença e influência judaica em Portugal tem sido objecto de múltiplos estudos, o mesmo não se verifica em relação à presença e influência árabe, a não ser talvez no âmbito da influência linguística. Talvez seja desconhecimento ou pura ignorância mas, para além de um Parreira de Oliveira e de um Garcia Domingues no passado e de um Adalberto Alves no presente, não recordo o nome de qualquer verdadeiro arabista em Portugal.

Afigura-se-nos tal circunstância dever-se ao facto de, encontrando-se as nossas raízes étnicas, da língua e da literatura na região galaico-duriense, região onde a presença e influência árabes sempre foram muito menos dominantes e significativas, daí partindo também toda a reconquista, nunca se ter atribuído particular relevância a qualquer eventual influência árabe.

Para além disso, deve-se mesmo ter em atenção a circunstância da designada cultura galaico-portuguesa, ou quanto assim podemos designar, sempre foi tido como um singularidade tal que, mesmo os estudiosos espanhóis, de Pidal a Pelayo ou de Sanchez-Albornoz a Armando Castro, a consideraram sempre aparte, como uma singularidade e realidade única em toda a Hispânia. Não sem um certo e muito subtil mas latente desdém pela doçura e encanto de um lirismo estranho a espanhóis de matriz castelhana. Um lirismo possível também por não sofrerem as agruras de uma prolongada, pesada e mesmo extenuante reconquista.

Por outras palavras, não tivemos e não temos ainda o nosso Ásin Palácios, descobrindo a influência árabe em Dante, sobretudo no que respeita às narrativas dos infernos dos primeiros. Talvez não houvesse ou haja sentido para o termos mas, não obstante, seria, será, sempre interessante desocultarmos quanto permanece ou quanto a nossa tradição modificou essa longínqua influência. E mesmo que entendamos não ter essa influência sido significativa, dada no entanto a directa influência de Dante em Portugal, poder-se-á interrogar também quanto, via Dante, recebemos nós, afinal, indirectamente, dos árabes da península.

Por outro lado, Sismondi não deixou de defender a tese segundo a qual as Cantigas de Amigo do Langedoc foram directamente influenciadas pela tradição e muito particular sensualidade e ingénuo folguedo árabe do Andaluz. Ora, sabendo quanto o Langedoc viria a influenciar, em parte, a nossa tradição galaico-portuguesa das Cantigas de Amigo, aí teríamos, ou teremos, novo motivo de investigação, análise e meditação.

Para além disso, há, evidentemente, o permanente diálogo do cristianismo com a filosofia árabe, bastando recordar como ainda hoje o Comentador se refere, por antonomásia, como sempre se referiu a Averróis, sempre também presente a S. Tomás, quanto mais não fora para o refutar, ou ainda a sempre também permanência de referência deste a Maimónides, em particular no que respeita ao Guia dos Perplexos, fosse em reforço das suas teses de interpretação de Aristóteles, fosse igualmente para o refutar.

Há, naturalmente quem defenda ter sido a filosofia grega passada aos ocidentais por via árabe, Avicena, Al Farabi, Averróis, e por aí adiante, justificando eventualmente uma outra fonte de influência. Todavia, desde Gilson ao mais recente livro de Sylvain Gouguenheim, Aristote au Mont de Saint-Michel, bem sabemos como essa tese não representa senão um procura mais de diminuição da tradição ocidental do de qualquer veracidade, pelo que não valerá a pena tomarmo-lo demasiado em conta. Mas isso não implica que não tenha havido, de facto, um chamado Averroismo Latino, a começar com o famoso caso de de Siger de Brabant e como Renan não deixou de documentar e expor na sua obra sobre Averróis.

Contudo, a obra de Mário Saa, A Invasão dos Judeus, não deixa de ser uma obra interessante neste enquadramento uma vez que, estudando as várias influência da nossa literatura, também não qualquer interesse por uma suposta influência árabe, tudo concentrando e decidindo-se entre a tradição galaico-portuguesa, se assim podemos dizer, de ascendência céltica e a tradição judaica. Ao contrário do que se pode imaginar, a obra não pretende ser uma obra anti-sionista mas tão só uma obra onde se demonstra o recuo da primeira tradição frente à segunda, afirmando mesmo que, ao dizer-se não haver já portugueses como os de antigamente, tal corresponder senão a um puro facto, uma vez, segundo a sua tese, a raça judaica ter superado, em Portugal, em todos os aspectos, inclusive literários, a raça céltica.

Como exemplo disso mesmo, oferece Mário Saa os casos de Teixeira de Pascoes, personalidade teluricamente céltica, em contraponto a Guerra Junqueiro e Fernando Pessoa, entre outras situações ilustrativas. E, claro, explica quanto, em seu entender, tal significa, para além da literatura, mesmo em termos de mutação da psicologia de um povo, no caso, do povo português.

O interessante, para o que aqui importa considerar, é como, uma vez mais, a influência da tradição e influência judaica parece ser perfeitamente clara e estudada enquanto a eventual herança árabe permanece em completa escuridão. E, de facto, de Leão Hebreu a Espinosa, de Junqueiro a Pessoa, para referir apenas os mais significativos nomes, não restam dúvidas do peso da influência judaica em Portugal não é desconhecido nem deixou vez alguma de ser atendido e estudado, mas não se passando o mesmo em relação nem ao Al-Andaluz nem ao Al-Gharb.

Todo este longo excurso afinal para reforçar apenas a pertinência, oportunidade e extrema importância da proposta de Miguel Bruno Duarte .

Afinal, não conhecendo as nossas raízes, as nossas tradições, não nos conhecemos a nós próprios; não nos conhecendo a nós próprios ficamos no mínimo «perplexos» senão mesmo perdidos; se ficarmos perdidos, é a própria nação, Portugal, que acabará também por se perder e esvair em nada, tal como hoje vemos estar já a suceder.

Há a monumental obra de Pinahnda Gomes sobre História da Filosofia Portuguesa? Há. Mas, da Patrística Lusitana à Filosofia Arábigo-Portugesa, passando pela Filosofia Hebraico-Portuguesa, não se me afigura que responda a quanto aqui ficou exposto, ou seja, à desocultação das mútuas influências das três tradições. Porém, tratando-se de uma obra inacabada, quem sabe quanto há a esperar, quanto o futuro poderá ainda dar-nos.

Tentando ilustrar com um breve exemplo, na Teoria do Ser e da Verdade, de José Marinho, muito mais do que a qualquer ligação a um pseudo-orientalismo tão ao gosto dos universitários de hoje, não podemos vislumbrar uma mesma dificuldade entre o seu conceito de espírito, ou pensamento, e a individualidade, tal como desde sempre foi questão de superior preocupação de um S. Tomás e ponto crítico de divisão entre latinos e árabes?



Mario Giacomelli, 19662/63

O cariz da filosofia portuguesa é eminente e indiscutivelmente cristão. Uma filosofia que tem entre as suas teses não poder haver Filosofia sem Teologia nem Teologia sem Filosofia, nunca o poderia deixar de ser. Conhece-se a atitude do islão perante filosofia e ausência hoje de uma Filosofia Árabe, não obstante os muito meritórios esforços de um Corbin, entre outros, para mostrarem como continuam a existir filósofos árabes, o que, não deixando de ser exacto, não implica a existência de uma filosofia árabe tal como esta expressão deve ser ocidentalmente entendida. Sabe-se também como o judaísmo é, acima de tudo, uma mística e não uma filosofia, sabe-se como Portugal, não obstante as dificuldades com Roma, desde as excomunhões da primeira dinastia até à questão do Padroado do Oriente, sempre foram uma constante, como não menos conhecido é, nunca tendo florescido a heresia nem o protestantismo em terras lusas, mantendo sempre uma tendência heterodoxa mas nunca herética, concedeu Portugal, de facto, a verdadeira catolicidade ao Catolicismo. Com tudo isto não está em causa a nossa tradição Celta e Católica, ainda que, talvez por isso mesmo, eivada de alguma heterodoxa , mas apenas a necessidade indispensável de nos conhecermos a nós próprios porque, repetimos, sem nos conhecermos a nós próprios, estamos perdidos e, connosco, Portugal.

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