domingo, 26 de julho de 2009

Da Patética e Temerosa Reverência pela Universidade ao Triste Desprezo por Portugal

Paulo Nozolino, Broken wave, Sagres 1984

Quando aqui se referiu, há uns textos atrás, de Colombo, de Mascarenhas Barreto e da hipótese de Cristóvão Colombo ser um Agente Secreto de João II, logo se alvoroçou um dos típicos e tristes anónimos do costume, deixando-nos em comentário: «Lamentavelmente, nada do que aqui se escreve sobre Colombo é verdade. O facto da contribuição portuguesa para a abertura da Europa ao Mundo ser frequentemente ignorada, minimizada ou ridicularizada pelos ignorantes noutros países em nada justifica que, pelo oposto, façamos da nossa história aquilo que ela não é. Foi contra uma e outra atitude que Vasco da Graça Moura e sobretudo Luís de Albuquerque e Pinheiro Marques se manifestaram. Há cem anos que amadores persistem neste erro, dando-lhe voltas cada vez mais mirabolantes. Com isso querem elevar a História de Portugal mas só conseguem denegrir a Historiografia Portuguesa.»

Compreende-se a preocupação de salientar as figuras de Luís de Albuquerque e Pinheiro Marques, insignes universitários, sobre Vasco Graça Moura, apenas literato e mero Comissário das Comemorações dos Descobrimentos nomeado, ou o que quer que o valha, à época da celebrada polémica.

Do já falecido Luís de Albuquerque, não esquecemos uma notícia lida, não sabemos já nem onde nem quando, onde se dava como citação sua, algo como esta pérola: a Escola de Sagres nunca existiu, e tanto mais nunca existiu quanto nunca os mínimos vestígios da sua pretérita existência encontrados foram.

Do igualmente celebrado Pinheiro Marques, recordamos um igualmente famoso debate televisivo onde, entre outros, se encontrando o próprio Mascarenhas Barreto, a determinado momento afirmou, peremptório, a falta de autoridade deste para conjecturar fosse o que fosse e menos ainda o proclamar publicamente dado nunca lhe ter sido passado o respectivo alvará e consequente licença por quem de direito para o fazer. Muito edificante, como se vê.

Mas, claro, muito se abespinha o dito Anónimo, como todos os anónimos, por se valorizar Mascarenhas Barreto e não ser dado o devido relevo e respeito aos lídimos representantes da dita Universidade Portuguesa que, denodadamente, buscam vestígios e documentos até à exaustão, não se eximindo mesmo ao risco de, perante tão extenuante tarefa, acabarem por não terem sequer tempo para parar um momento e pensarem um pouco sobre quanto buscam e as razões de quanto buscam.

Triste, muito triste, é ver os doutos universitários procederem como se não soubessem que a História não se faz apenas de documentos e vestígios ou que, não deixando os documentos e vestígios de terem a importância que têm, em muitos casos são, porém, quanto menos importância tem para uma verdadeira compreensão da mesma História. Isso, sim, é triste, muito triste, o mais triste.

Quanto ao dito «caso Cristóvão» Colombo já tanto se escreveu que chega a cansar um pouco retomar o assunto, sobretudo quando tudo reverte ao que menos importa, ou seja, à questão da sua nacionalidade. Há gostos para tudo, desde a mais famosa tese da sua filiação genovesa até, como não poderia deixar de ser, à sua mais arrevesada filiação cripto-judaica catalã. Pouco importa. Como todos sabemos, não é isso o mais relevante. O mais relevante, de facto, é a tese de Colombo não ter sido senão um agente secreto de D. João II, «o homem», como o cognominava Isabel de Aragão, com a admiração absoluta de quem o conhecia desde a mais tenra idade.

A tese de Colombo não ter sido senão um agente secreto de D. João II, não é apenas verosímil como a única que explica tanto o seu incompreensível comportamento em tantos e tantos episódios absolutamente extraordinários para a época como também a única que faz luz sobre muitos dos mais estranhos movimentos diplomáticos, geopolíticos e geoestratégicos em igual período.

Para avivar a memória aos mais distraídos talvez se justifique relembrar dois ou três episódios dos mais significativos.

Em primeiro lugar e antes de mais, não soa estranha a obsessão de Colombo em convencer os Reis Católicos, e só os Reis Católicos, a financiar a sua viagem de descoberta do Caminho Marítimo para a Índia por Ocidente? Porque, apesar de saber perfeitamente nunca ter alcançado a Índia persistiu na abstrusa tese de lá ter chegado e não a qualquer outra parte do que se veio a designar como Novo Mundo? Porque obrigou Colombo aos seus pilotos e marinheiros a um juramento sob de morte a não revelarem senão que, efectivamente, haviam aportado à Índia, a chamar aos indígenas do novo mundo, índios, quando, manifestamente, índia alguma sabia haverem alcançado? Ora, não é esta obsessão com os Reis Católicos e com a Índia altamente significativa?

Como explicar também, por exemplo, o facto de Colombo, no regresso da sua primeira viagem às Antilhas, sob pretexto de frota ter apanhado uma forte tempestade ao largo dos Açores, ter vindo a desembarcar a Lisboa enquanto o segundo navio ter ido avisadamente apor à Galiza? Não teve o exímio Colombo, como é descrito, capacidade suficiente para dirigir o seu navio ao destino pretendido, tendo chegado a Lisboa tão só por mera obra do acaso? E mais estranho ainda não é facto de facto de, tendo desembarcado em Lisboa, por acaso ou não, ter decidido regressar a Espanha por via terrestre, não sem antes parar em Santarém para ser recebido por D. João II? Quando sabemos as estritas regras de sigilo impostas por D. João II, não seria destemor em demasia, mesmo provocação, ir visitar o monarca português para, num tom que não poderia deixar de ser de desafio, lhe dar conta dos seus feitos, ele, como segundo dizem, que não passava de pobre filho de um pobre cardador de peixes genovês? Não seria mais avisado, correcto e esperado que os primeiros monarcas a serem informados pormenorizadamente do feito da chegada à suposta Índia por Ocidente, fossem os Reis Católicos, os mesmos que, haviam afinal pago e financiado tal viagem?

Na época não estavam os portugueses cansados de verem os espanhóis na águas que entendiam ser suas, atacando, por vezes saqueando e sempre importunando as viagens de exploração da costa africana e dos regimes de ventos do Atlântico Sul? Não poderia tal situação vir a colocar importunar e colocar em perigo o supremo objectivo das Descobertas da Coroa Portuguesa, como era o da chegada à Índia por via marítima, contornando o Continente Africano?

Porque alteraram os portugueses, com a assinatura do Tratado de Tordesilhas, para 370 léguas marítimas para ocidente de Cabo Verde o meridiano que deveria ficar a delimitar os hemisférios do mundo pertencentes às coroas de Portugal e de Espanha? Não assegurava Portugal com tal alteração não apenas o futuro Brasil mas também as terras e áreas do Atlântico Norte, como a península do Lavrador e as zonas de pesca, por exemplo ou acima de tudo, do bacalhau? E não ocorreu tudo isto depois da segunda viagem de Colombo pela sua dita Índia?

Se Colombo era, como é dito, e provavelmente o era mesmo, um exímio piloto, porque não condizem as informações dos seus supostos roteiros de viagem com as rotas efectivamente seguidas, tal como terão sido apresentados aos Reis Católicos e cujas incongruências expostas luminosamente foram pelo Almirante Gago Coutinho?

Esta breve súmula de exemplos, cremos, é já de si suficientemente elucidativa para, senão provar, pelo menos colocar sob suspeita, findada suspeita, as verdadeiras intenções de Colombo ao apresentar-se e apresentar aos Reis Católicos o seu plano de chegar à Índia pelo Ocidente e mais suspeito ainda pelo seu comportamento ao longo do tempo, sobretudo após a primeira viagem.

Para o dito Anónimo, como para todos os anónimos deste mundo, nada disto importa mas tão só o atávico receio de quanto os inteligentes estrangeiros detractores da História de Portugal, e de Portugal mesmo, possam ou não pensar sobre a Historiografia Portuguesa. Mesmo coisa que só a anónima gente poderia alguma vez lembrar, sem dúvida.

De qualquer modo, o ponto fulcral era, como não poderia deixar de ser, no anterior texto, chamar a atenção para um tempo em que Portugal soube ser acima das suas factuais possibilidades porque soube ter e congregar uma providencial inteligência política muito acima dessas mesmas pretensas possibilidades factuais, antecipando e criando um dos mais extraordinários Sistemas de Informações e de Contra-Informações que a História já conheceu.

Exactamente quanto não escapou, como não podia escapar, ao General Pedro Cardoso, a quem se deve a verdadeira reestruturação dos Serviços de Informações após 1974, como bem explicitado na sua obra, «As Informações em Portugal».

Esse é o ponto crucial e quem vai estando atento ao que acontece no mundo e em Portugal não poderá deixar de ficar perplexo exactamente pelo estranho modo como, ainda hoje, as questões relacionadas com os Sistemas de Informações vêm sendo entendidas ou destendidas na nossa actual República.

Na verdade, quando, ainda hoje, nos referimos a Sistemas ou Serviços de Informações em Portugal, a atávica reacção é logo imaginar uma nova PIDE, como se houvesse por aí um grupo de pessoas que não tivesse mais do que fazer e qualquer outro objectivo senão propor-se escutar e escrutinar, minuto a minuto, a vida de onze milhões de portugueses.

Como se sabe, nenhum Estado digno desse nome vive ou sobrevive sem verdadeiros Sistemas ou Serviços de Informações Internos e Externos, embora essa distinção vá, hoje, esbatendo-se um pouco também.

Como temos repetidamente dito e não nos cansaremos de chamar a atenção, Portugal, pela sua posição geográfica de entrada na Europa e ponto de interligação entre continentes, assume ou encontra-se numa posição de primacial importância geoestratégica

Mais do que talvez muitas outras nações no mundo, Portugal não pode deixar de se considerar como potencialmente ameaçado por actos passíveis de serem perpetrados no espaço do seu território terrestre e marítimo, de autoria dos mais variados Grupos de Crime Organizado, sejam Grupos Terroristas, Grupos de Narcotráfico, Grupos de Tráfico de Seres Humanos, Grupos de Tráfico de Armas ou de Falsificação de Moeda, para nomear apenas alguns dos casos mais graves e evidentes, sem mais longe ir.

Neste momento, como é natural, as atenções tendem a concentrar-se sobretudo nas ameaças terroristas e a reacção imediata é julgar não constituir Portugal, seja para que grupo terrorista for, um alvo principal. Afinal, não se encontrando em Portugal nenhumas das tensões que, usualmente, são dadas como causa desses mesmos actos, uma vez termos uma Comunidade Muçulmana perfeitamente integrada, não sofrermos de quaisquer problemas de reivindicações separatistas regionais e possuírem até as comunidades de novos imigrantes um fundo cultural semelhante ou, pelo menos, uma mesma raiz de matriz cristã, tampouco oferecerem,por consequência, uma particular preocupação, logo se conclui apressadamente não se vislumbrar razões para que tal eventual ameaça alguma vez se concretize ou venha a concretizar-se.

Para além disso, dada, uma vez mais, a posição geográfico-estratégica de Portugal e a sua atitude, em geral, mais aberta, reconhecendo-se mesmo o seu ptencial valor como eventual base de recuo, mais razões se encontram ainda de defesa da tese da improbabilidade de qualquer ameaça vir a concretizar-se.

Contudo, não sendo possível deixar de se conhecer e reconhecer as crescentes dificuldades de operação encontradas em outras paragens, não menos defensável será igualmente a tese segundo a qual, exactamente por isso, à medida que o tempo passa, mais e mais aumentam as probabilidades de algo poder vir a suceder, exactamente por facilidade de operação, no território nacional.

Podendo estarmos pessoalmente mais de acordo com uma ou outra das teses, em termos institucionais, i.e., do ponto de vista do Estado, constituindo uma das suas primeiras e mais importantes obrigações a defesa dos cidadãos, não se afigura aceitável que, por ingenuidade, incúria ou seja o que for, descurada seja qualquer possibilidade, por mais remota ou mínima que seja e, não menos consequentente, obrigatória e imperiosa não seja a constituição dos melhores e mais avançados Sistemas ou Serviços de Informações que possível seja constituir.

Todavia, para além dessas ameaças mais evidentes, como aqui, no Albergue Português, já se chamou explicitamente à atenção, hoje, outras ameaças bem mais subtis se começam a afirmar e a manifestar para quem souber ver com olhos de ver quanto se passa no mundo. De facto, não podemos esquecer que as guerras do presente e do futuro, sobretudo no mundo civilizado, são e serão predominante de carácter económico, onde se podem incluir desde as guerras ou a competição pelas matérias-primas como pela energia, água ou não menos grave e dramaticamente, no futuropróximo, pelos alimentos.

Nesse âmbito, como é evidente, a importância de eficazes e eficientes Sistemas ou Serviços de Informações altamente avançados e eximiamente organizados, continuará a ser sempre e cada vez mais, um dos imperativos primordiais de um Estado digno desse nome.

Não por acaso, os franceses criaram já a função de um Alto Representante para as Informações Económicas a funcionar directamente ligado ao Gabinete do Primiero-Ministro, estendendo o conceito ou área de acção a toda a área francófona com o objectivo de defender e reforçar a competitividade das suas empresas em relação ao que temem e designam como ameaça económica anglo-americana dominante na actualidade, independentemente das outras economias emergentes.

Entretanto, que fazemos nós? Ficamos parados por falsos e atávicos preconceitos político-emocionais ou avançamos decisivamente para o futuro, criando, inclusive, um Sistema ou Serviço de Informações Estratégicas Marítimas para defesa da nossa posição geoestratégica e reforço e afirmação da Comunidade de Língua Portuguesa na Atlântico?

Claro, para os anónimos deste mundo, nada disto conta ou importa. E muitos desses anónimos, muitos há que se afirmam, infelizmente, também portugueses. Não sabemos é se por lapso ou premeditada intenção, como seja a de fazer de todos nós parvos.

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domingo, 12 de julho de 2009

Ainda do Liberalismo Enquanto Doutrina do Espírito

Chema Madoz


Miguel Bruno Duarte, ao surpreender-se na Leonardo por eu me ter surpreendido com o seu comentário a um anterior texto, «Ainda da Filosofia Portuguesa e Árabe», publicado há semanas, surpreendeu-me de novo, fazendo-me sorrir.

O «esclarecimento» de Miguel Bruno Duarte, é, como seria de esperar, um excelente texto de síntese, glosando algumas das principais teses de F. Hayek e, sobretudo, de Orlando Vitorino no que ao liberalismo económico respeita. Todavia, para não perdermos o fio ao diálogo, importa, antes de mais, entendermos devidamente o enquadramento em que este mesmo diálogo surgiu.

No referido texto, talvez insuficientemente exposto, admite-se, quanto se procurava era exactamente dar nota de não poder confinar-se o liberalismo, entendido como doutrina do Espírito, ao liberalismo económico, sob pena de se subsumir na ordem prática quanto pertence a uma ordem superior da realidade, afirmando-se ipsis verbis: «Assim se compreenderá também, cremos, mais facilmente a importância que atribuímos ao Liberalismo, mais do que doutrina económica, mais do que doutrina política, como verdadeira doutrina do Espírito».

Foi num pertinente comentário a esse texto que Miguel Bruno Duarte deixou escrito, « … aqui fica, para irmos pensando, o desafio decorrente da primeira tese filosófica do liberalismo, a saber: onde não há liberdade económica, não pode haver liberdade individual e política», exacta origem da primeira surpresa porquanto não se afigura como possa ser tida a tese, «onde não há liberdade económica, não pode haver liberdade individual e política», a «primeira tese filosófica do liberalismo».

Haverá outra possível interpretação para a citada frase de Miguel Duarte Bruno? Haverá. Poderemos, em boa verdade, entender a frase como querendo significar constituir-se a afirmação, «onde não há liberdade económica, não pode haver liberdade individual e política», não «a primeira tese filosófica do liberalismo», mas tão só o desafio, que importa pensar, decorrente «da primeira tese filosófica do liberalismo».

Sendo esta segunda interpretação a exacta, não se diz, porém, qual essa «primeira tese filosófica» da qual decorre o «desafio» que importa pensar, ou seja, o de «onde não houver liberdade económica não poder haver liberdade individual e política», nem, no «esclarecimento» que Miguel Bruno Duarte entendeu dever prestar, entendeu dever esclarecer.

Todavia, mesmo sendo esta segunda interpretação, a interpretação correcta, ainda assim, embora talvez por desconhecimento do que entende Miguel Bruno Duarte como «primeira tese filosófica do liberalismo», mas também independentemente disso, não vislumbramos, seja ela qual for, razão necessária para se deduzir como primordial desafio a ser pensado, hoje, a citada tese de Hayek. Exactamente quanto, sem demasiada pretensão, julgamos ter ficado também devidamente exposto no nosso anterior texto, «Liberdade».

Miguel Bruno Duarte inicia o seu «esclarecimento» relembrando a natural distinção anglo-saxónica entre «liberty» e «freedom», bem como a «tradução orlandina de Ivone de Moura», como «liberdade principial» e «liberdade individual».

Não obstante o rigor filosófico da tradução, pelas razões a seguir expostas, julgamos talvez preferível traduzir mais sinteticamente, apenas por «liberdade» e «liberdade política».

Entendendo a liberdade como princípio, não podemos senão entender a mesma liberdade sempre como liberdade principal e, consequentemente, referir a mesma liberdade apenas como liberdade ou liberdade principial, é sempre um e o mesmo quanto se significa, não se justificando o uso da segunda expressão senão em casos particulares de necessidade de esclarecimento de conceitos.

No que respeita à «liberdade individual», a situação é distinta.

Sendo a todos dada a liberdade, este surge ao homem como um processo de gradual iniciação na mesma liberdade, pelo pensamento, o que poderá ser dito também como um processo de gradual libertação.

Como também relembrámos, afirmando Leonardo Coimbra ser o homem livre por interpor, entre a sensação e a acção, o pensamento, dava também como responsabilidade da educação, formar para a liberdade, o que, de diferente modo, podemos considerar igualmente como significando educar para a individualidade ou entender o processo de educação sempre como um processo de crescente individuação.

Ora, entendendo a «liberdade individual» primordialmente como significando, de outro modo, o processo de individuação, pelo pensamento, afigura-se-nos poder ser perigoso, por equívoco, designar por «liberdade individual» quanto designamos, ou entendemos dever ser apenas designado, como «liberdade política», i.e., a autonomia concedida ao homem para a afirmação da sua individualidade na existência. Ou, por outras palavras, sempre quando e enquanto ao homem for dado pensar, a «liberdade individual» não lhe pode ser negada, dispondo ou não dispondo, sendo-lhe concedida ou não, a designada «liberdade política».

Acusar-nos-á Miguel Bruno Duarte de precipitarmos o juízo quando, firmado na esfera da liberdade principial, pecaremos por não realizarmos, «ao modo orlandino, a relação que se situa entre o homem e a transcendência, ou entre o mundo real das relações vividas e a teoria pura do espírito».

Procurando demonstrar, por um lado, a nossa precipitação e, por outro, a razão de dar como primordial a supracitada tese de Hayek, adianta ainda Miguel Duarte Bruno: «uma coisa é certa, como já, íntima e pessoalmente, o reconhecera Orlando Vitorino: o de que sem pensamento não há mediação conceitual entre a propriedade do corpo do homem, ele próprio ideia ou arquétipo de todas as outras espécies de propriedade, e o puro domínio da liberdade. Ou melhor: a propriedade identifica-se com a liberdade, justamente porque se «a propriedade do corpo é a imagem perfeita do conceito e se o conceito, por pertencer ao domínio do pensamento, pertence ao puro domínio da liberdade, uma vez que só o pensamento é livre, nela reside a realização natural e espontânea da liberdade no mundo».

Recorrendo a Orlando Vitorino, coloca-nos Miguel Bruno Duarte numa situação difícil, quase de imediata inferioridade, quer por ter sido Orlando Vitorino o mais singular dos discípulos de Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro e José Marinho, como talvez o mais notável dos filósofos da sua geração, maior entre os maiores, quer por não ser fácil sintetizarmos tão alto pensamento sem, de um modo ou outro, corrermos o risco de uma extrema e desadequada simplificação.

Todavia, partindo da sua admirável obra, «Exaltação da Filosofia Derrotada», obra nem sempre devidamente atendida, mesmo dentro do círculo dos mais próximos, como, surpreendentemente se comprova na derradeira obra, «Do Amor e da Morte», de outra figura notável como foi Afonso Botelho, de onde Miguel Bruno extrai a precedente citação, logo compreendemos como, para Orlando Vitorino há três espécies de propriedade: a propriedade absoluta, a do corpo do homem, arquétipo ou ideia das outras espécies de propriedade, inalienável, indivisível e perpétua; a propriedade perfeita, a das coisas naturais, alienável, mas não como os produtos naturais, divisível no limite da divisibilidade permitir a reconstituição de uma nova unidade e, não sendo perpétua, sempre se renova e sempre suporta as perturbações que o homem decidir sujeitá-la; propriedade imperfeita, a dos produtos industriais, também dos produtos da terra, divisível, alienável, destinando-se mesmo a sê-lo, de duração fugaz, existindo para não existir, para se gastar, corromper e consumir.

Como Orlando Vitorino viu, também, como nos expõe, uma das fraquezas do pensamento do «liberalismo económico» ao longo do tempo, reside exactamente na circunstância de nunca se ter atendido devidamente à «categoria económica» da propriedade, modalidade da categoria aristotélica de substância, não se firmando assim num todo uno e coerente.

Para além disso, a analogia estabelecida entre o corpo humano como o arquétipo ou ideia de toda a propriedade, é iluminante, não apenas para a melhor compreensão do pensamento inerente ao liberalismo económico mas para todo pensamento ou conhecimento da realidade.

Porém, o mais notável, o ponto crucial, afigura-se-nos ser a determinação da propriedade, estabelecendo uma relação entre o homem e as coisas, residir não nas coisas mas nas próprias coisas. Por outras palavras, toda a propriedade exige um proprietário.

Porque toda a propriedade exige um proprietário? Porque é o homem que, pelo pensamento, dá existência ao mundo, porque o homem dá, às mesmas coisas, pelo pensamento, o conhecimento de si, tornando manifesto e real quanto lhes é próprio.

Se atendermos a quanto acaba de ficar exposto, com facilidade poderá haver renovada compreensão das palavras de Sampaio Bruno, tido por Álvaro Ribeiro como o fundador da Filosofia portuguesa, quando, na esteira de Novalis, afirma ser finalidade do homem libertar-se, libertando consigo todos os seres e o próprio mundo, o que entendemos poder significar também dar plena realidade a toda a criação, a cada ser da criação, individualmente considerado.

Nunca esteve em causa, como não está, a importância do liberalismo económico, sobretudo na formulação que lhe foi dada por Orlando Vitorino. O que sempre esteve e está em causa é saber se é adequado dar como primacial o liberalismo económico como expressão máxima, perfeita, quase se diria absoluta, do mesmo liberalismo como doutrina da liberdade.

Na nossa interpretação, além do liberalismo económico há igualmente um liberalismo jurídico, um liberalismo político, um liberalismo religioso, um liberalismo cultural, sendo o liberalismo económico apenas uma expressão, nem talvez a mais significativa, do mesmo liberalismo enquanto doutrina da liberdade.

Assumiu o liberalismo um predomínio histórico que ainda hoje se verifica? Sem dúvida, tanto mais quanto é na existência social, se assim nos podemos expressar, que os homens vivem as formas mais imediatas da liberdade, mas é exactamente esse predomínio que, hoje, se nos afigura perigoso, reduzindo toda a doutrina liberal exclusivamente ao liberalismo económico.

A importância da defesa da liberdade económica não se nos afigura assumir hoje a imediata veemência de há trinta ou quarenta anos. Hoje, afigura-se-nos, a gravidade da situação é distinta, consistindo essencialmente na redução da política aos aspectos da administração económica, reduzindo-se mesmo toda a realidade as aspectos económicos da mesma.

Ora, não se nos afigura também ser pela liberdade económica que se ascenda à liberdade substancial, não obstante, como doutrina deduzida da primordial doutrina da liberdade, se possa afirmar conter em si uma equipotente virtualidade.

Ora, se atendermos a quanto se passa hoje à nossa volta, fácil é constatar como essa mesma redução política à economia, sem atenção a nada mais, está a corroer tudo, conduzindo inclusive ao esvaimento de Portugal.

Ora, se soubermos atender à doutrina da liberdade como doutrina do espírito, se não soubermos atender à circunstância de só pelo pensamento do homem o mundo se tornar real, se negarmos a transcendência e não soubermos reconhecer já, por conseguinte, o significado de Pátria como entidade espiritual, compreendendo como só pelo pensamento que da mesma tivermos, a mesma passível é de se tornar real, se compreendermos como só será possível tudo isto ultrapassar se formarmos os homens para a liberdade e a individualidade, de acordo com a melhor tradição da Filosofia Portuguesa, só então possível será vislumbrar salvação para esta aparentemente inexorável decadência em que nos encontramos.

É essa a minha preocupação que nenhum «liberalismo económico», de per si, e somente de per si, resolve.

Todavia, se, como afirmava José Marinho, bastando haver 500 portugueses para Portugal subsistir, acreditando nós na existência actual desses mesmos 500 portugueses, 500 portugueses que sabem ainda pensar a Pátria portuguesa, acreditamos nem tudo estar ainda perdido.

Post Scriptum: Porque afirmámos termos sorrido à leitura do texto de Miguel Bruno Duarte? Porque, inesperadamente, Miguel Bruno Duarte, a determinado momento, pareceu assumir quanto se havia escrito no texto anterior, como uma crítica pessoal, reagindo, assim, em consequência, ou seja, demasiado pessoalmente e, por momentos, vislumbrei poder este diálogo, em que dificilmente poderemos discordar no que é essencial, transformar-se numa espécie de quezília universitária de susceptibilidades feridas, sobrelevando as questões pessoais, de status e reconhecimento de autoridade, tudo o mais, incluindo a substância do próprio diálogo. Tal imagem, embora fugaz, não pôde, no entanto, deixar de me fazer sorrir.


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domingo, 5 de julho de 2009

Subtilezas

Fernando Lemos, Intimidades do Chiado, 1949


«Convém que a todas as gerações seja apresentado de novo o problema de saber se existem, ou não, alguns povos interessados no desaparecimento da nação portuguesa», deixou Álvaro Ribeiro escrito no seu livro, Escola Formal, este aviso que, hoje, passados cerca de cinquenta anos, não deixando de manter o seu valor de sempre, continua tão pouco atendido como então, ou pior ainda, não suscitando senão também o mesmo típico sorriso sobranceiro de sempre dos néscios de espírito.


Recentemente, a imprensa dava a notícia da Cidade Velha de Cabo Verde passar a integrar a lista do Património da Humanidade, surgindo redigida do seguinte e aparentemente inócuo e factual modo, como sucedeu no jornal Público: «A elevação da Cidade Velha de Cabo Verde a Património Mundial da Humanidade, ontem decidia pela UNESCO, é o culminar de um projecto iniciado há uma década e distingue o primeiro núcleo populacional na ilha de Santiago. Também conhecida por Ribeira Grande de Santiago, é a primeira cidade construída por europeus nos trópicos, no século X. Erigida para servir de ponto de abastecimento para o comércio de escravos entre África e a América, foi a primeira capital do arquipélago, título que ostentou até 1770».

E depois, citando a justificação da organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, refere-nos ainda a notícia: «É um testemunho da história da presença da Europa colonial em África e da História da escravatura».

A subtileza, aparentemente inocente, de referir ter sido a Cidade Velha «a primeira cidade construída por europeus nos trópicos», ao invés de dizer, por exemplo, ter sido a primeira cidade fundada pelos portugueses nos trópicos, é notável.

De um ponto de vista estritamente factual, a afirmação é verdadeira: não deixando os portugueses de serem um dos muitos povos europeus, a substituição de um termo pelo outro, dir-se-á legítima. Todavia, para quem souber ler, também se compreende o que se pretende esconder.


Quem fala ou escreve, fala e escreve para persuadir e persuadir-se também. Quem fala ou escreve, fala ou escreve com palavras. As palavras, a escolha das palavras com que se fala e se escreve, não é, nunca é, inocente. Embora não seja possível pensar a partir das palavras, não há pensamento sem palavra.

A luta pela expressão, como diria Fidelino de Figueiredo, é sempre uma busca da palavra certa, como diria Leonardo Coimbra.

A língua é um mistério. Ao contrário do que poderão defender alemães e todos os cientistas modernos, sejam ditos linguistas ou neuro-cientistas, a língua é uma realidade de diferente ordem ou, se preferirmos, representa e afirma sempre uma diferente ordem de realidade.

Não havendo pensamento sem palavra, a palavra pode condicionar o discorrer do pensamento e, mesmo mais do que condicionar, pode mesmo conduzir o pensamento tanto aos mundos supernos quanto aos mundos infernos.

Não por acaso, tanto Toynbee como Ortega y Gasset davam como uma das origens ou início da queda do Império Romano, a degradação da língua, tal como hoje vemos suceder com a língua portuguesa, procurando-se talvez, pela degenerescência da língua, conduzir os portugueses a equivalente degenerescência mental.

Questões mais graves e fundas do que ultrapassam a notícia supracitada.

Na notícia supracitada, devemos atender, antes de mais, ou facto de a mesma, embora não assinada, se encontrar redigida por um jornalista do jornal, um jornalista presumivelmente português, ou seja, embora se saiba pouco mais constituir do que uma tradução dos noticiários internacionais, a notícia assim redigida passa por veicular o entendimento que nós, portugueses, temos da nossa História ou de como, hoje, deixamos deturpar o entendimento da nossa História de acordo com esses mesmo interesses internacionais.

O fenómeno, sobretudo quanto aos Descobrimentos respeita, não é novo. Basta lembrar os notáveis e incansáveis trabalhos de um Visconde de Santarém, de um Joaquim Bensaúde, dos irmãos Armando e Jaime Cortesão ou ainda de um Gago Coutinho, desfazendo muito dos disparates ditos sobre os Descobrimentos, para percebermos do que se está a falar. Disparates ditos, porém, não apenas por ignorância, mas com a expressa intenção de denegrir a imagem dos portugueses e a sua primazia no Descobrimento dos novos mundos, defendendo-se teses tão peregrinas como a de termos aprendido a navegar com os alemães, ou, pelo menos, com um suposto sábio cujo nome nem vale a pena recordar.

Mais recentemente, a famigerada Europália em Portugal, em 91, mais não foi senão um renovado pretexto para dar os Descobrimentos como obra da Europa e não de Portugal e, reconhecido seja, de Espanha também.

Porque ainda não muito distante, todos nos recordaremos, com certeza, da famosa polémica gerada pelo livro de Mascarenhas Barreto, Cristóvão Colombo Agente Secreto de D. João II, parecendo ser uma ofensa nacional a defesa da tese da nacionalidade portuguesa de Cristóvão Colombo.

Muito mais importante do que a tese da nacionalidade era a tese, tão plausível quanto justificada, de Cristóvão Colombo, mas logo os universitários, de Vasco Graça Moura a Luís Albuquerque, vieram a terreiro refutar e repudiar furiosamente tais teses como se as mesmas mais não fossem senão pura iniquidade, mas aceitando, entretanto, doutoramentos honoris causa em universidades italianas, levando Mascarenhas Barreto a proferir a célebre piada segundo a qual «os novos dispunham-se a aceitar doutoramentos honoris causa como os antigos régulos aceitavam despertadores».

A tese de Cristóvão Colombo ter sido um agente secreto de D. João II, não só não é disparatada como é perfeitamente consentânea com toda a política, obra e modus operandi desse grande monarca, o primeiro talvez a criar um verdadeiro e extraordinário Sistema de Informações e Contra-Informação, de um Estado europeu, bem como o primeiro a impor, por razões estritamente estratégicas, uma «política de sigilo» das mais exigentes e rigorosas que alguma vez terá havido na História, por razões estritamente estratégicas. Mas, é evidente, quando se pretende fazer crer que os Descobrimentos, feitos pelos portugueses, mais não foram senão obra do acaso quando não obra europeia em que nós mais não servimos senão como uma espécie de intermediários, carne para canhão ou alimento para os peixes, importa, com certeza, nada disso importa considerar, ou lá iriam as ditas teses por água abaixo.


Todos, hoje, falamos de Portugal como uma nação deprimida. Todos falamos, é certo, mas poucos atendemos já às razões de assim ser. Quando deixamos, sistemática e metodicamente, denegrir quanto fomos e fizemos, quando vemos actuarem muito de entre nós como puros agentes, nocentes e inocentes, de quem apenas pretende a nossa destruição enquanto nação independente, quando não sabemos já olhar para o passado para, compreendendo o espírito implícito na nossa História, podermos pensar o futuro, como não estarmos nós, como povo, deprimidos?

A supracitada notícia, embora significativa, será apenas um pequeno exemplo, sem dúvida. Mas estes pequenos e subtis exemplos, passando quase desapercebidos, não deixam, por vezes, de terem as mais vastas e profundas repercussões. Quando aceitamos, como subtilmente se pretende que todos deduzam da notícia, não terem tido os Descobrimentos outra finalidade senão a escravatura, começamos a perceber também onde nos querem levar. Quando começamos a aceitar tudo isto passivamente, começamos a perder-nos e, se nos perdermos por isto, também poderemos dizer que nos perderemos merecidamente porque um povo que aceita tudo isto e não saiba já pensar a sua razão de ser e defender-se consequentemente, não merece, de facto, sobreviver, mais sendo senão sinal de que está já morto e «dissolvido em sua existência histórica».


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