domingo, 17 de maio de 2009

Ainda Da Filosofia Portuguesa e Árabe


Augusto Alves da Silva, Serra da Estrela, 2001


Na Leonardo, Miguel Bruno Duarte retoma, num magnífico e muito circunstanciado texto, o tema da relação entre a Filosofia Portuguesa e a Filosofia Árabe, numa espécie de dedução cronológica e histórica, como comentário adicional ao comentário entretanto aqui deixado ao seu inicial texto sobre Silves

Tantas e tão importantes são as questões abordadas que difícil é sintetizar tudo quanto desde logo as mesmas suscitam. Todavia, pela importância e pelo gosto dos temas abordados, não podemos deixar senão de tentar alinhar quanto se nos oferece dizer sobre as mesmas questões, em tão breve e sistemática síntese quanto possível.

Numa primeira instância, desde logo sobressai a questão do liberalismo, afirmando Miguel Bruno Duarte o propósito e necessidade de «desenvolver e aprofundar as teses do liberalismo económico, político e religioso», perante um «ambiente dominado e esmagado por uma cultura universitária incapaz de pensar e amar a Pátria portuguesa».

Dupla questão logo aqui se coloca, a do liberalismo e a do desamor da nossa actual Universidade pela sua Pátria. Tratemos, em primeiro lugar, do liberalismo.

Como doutrina política e económica, o liberalismo está hoje pelas ruas da amargura, não havendo quem não aí coloque a raiz ou causa de todos os actuais ditos problemas do mundo ou da chamada crise financeira actual. Sem cuidarmos agora de dilucidar tais disparates, embora talvez ao tema um dia seja de regressar, devemos aqui atender, antes de mais, tanto ao facto de não ser o conceito unívoco como, mais grave, raramente se entender quanto verdadeiramente representa e significa nem, menos ainda, se compreender verdadeiramente a sua dedução.

De um ponto de vista filosófico, existem, como se sabe, três princípios: a Verdade, a Liberdade e a Justiça.

Em rigor, há apenas um princípio, Deus ou a Verdade, entendido seja de um ponto de vista religioso ou filosófico. No entanto, como também extraordinariamente exposto por José Marinho na Teoria do Ser e da Verdade, não sendo a Verdade para si, cindindo-se, da cisão emergem, se assim podemos referir, a Liberdade e a Justiça como princípios concomitantes, o que pode ser entendido também, em diferente plano, como expressão do inexorável carácter triádico de toda a manifestação.

Se a Verdade é sempre princípio, já a Liberdade e Justiça são susceptíveis de, além de princípios, devirem finalidade como também magnificamente exposto por Orlando Vitorino na Exaltação da Filosofia Derrotada.

Deduz-se o Liberalismo como a doutrina que tendo primado na Liberdade assume no Direito a realização dessa mesma Liberdade; deduz-se o Socialismo como a doutrina que tendo como primado a Justiça assume no Direito a finalidade de realização dessa mesma Justiça.

De um ponto de vista estritamente filosófico, dir-se-ia serem indistintas ambas as doutrinas uma vez representarem apenas, no limite, distintos modos do mesmo. Todavia, vivendo nós no mundo da contingência, um mundo perfectível mas não perfeito, assim não é.

O socialismo, todo o socialismo, tem como pecado original de nunca se ter libertado de uma inicial descrença profunda na natureza humana, num misantropismo extremo, quase diríamos, para além de concluir, entre outros múltiplos erros e descaminhos, por um deformado conceito de Justiça, confundindo-a com a realização de uma absurda igualdade entre os homens, assim conduzindo à negação da individualidade, ou à possibilidade de individuação, e acabando por todos reduzir à servidão e à consequente miséria.

O liberalismo, assumindo como primado a liberdade, reconhecendo desde início a contingência do mundo mas crendo na perfectibilidade do ser humano, afirma a prioridade e superioridade do indivíduo sobre tudo o demais.

Como escreveu Leonardo Coimbra, tal como citamos em epígrafe a este nosso Albergue Português, «o homem não é uma inutilidade num mundo feito mas o obreiro de um mundo a fazer». Uma afirmação verdadeira apenas no seio da mais vasta liberdade, no âmbito de uma filosofia assumindo como primado a liberdade, ou, de outro, mal se compreenderia tanto o a imperiosa responsabilidade de aperfeiçoamento individual quanto a responsabilidade pela própria individuação. Aperfeiçoamento e individuação que se dão pelo pensamento, entendendo aqui pensamento no seu mais alto e vasto conceito Atlântico, se assim nos podemos referir, e não no seu mais estreito e caduco limite da razão Continental.

Assim se compreenderá também, cremos, mais facilmente a importância que atribuímos ao Liberalismo, mais do que doutrina económica, mais do que doutrina política, como verdadeira doutrina do Espírito.
O primado do indivíduo, da individualidade, não significa, e muito menos implica, qualquer forma, mitigada seja, de qualquer solipsismo tão contrário à tradição portuguesa, importando aqui recordar aquela que podemos considerar uma das teses cruciais de Leonardo e, por extensão, hoje, da Filosofia Portuguesa, quando afirma ser o absoluto sempre o «absoluta da relação».

Tal como S. Tomás, referido no texto de Miguel Bruno Duarte, Leonardo Coimbra tampouco anulava a criação no Criador, como foi também o nosso Frei Agostinho da Cruz que escreveu querer ver o Criador nas criaturas. O que se afigura importante porquanto, como lembra Miguel Bruno Duarte, citando Álvaro Ribeiro quando afirma ter origens imprecisas a poesia que se aclimou entre nós durante o reinado de D. Afonso III, tanto podendo ser atribuídas à poesia popular árabe como à poesia provençal, se pensarmos na formação de D. Dinis e, sobretudo, na da Rainha Santa Isabel, de Aragão, logo sobressai, não obstante todas essas possíveis e enigmáticas influências e origens, vez alguma ter tido afirmação entre nós qualquer forma de expressão da heresia cátara.

Mais do que isso, relendo a nossa Poesia Trovadoresca, as nossas Canções de Amor e de Amigo, logo se denota uma relação entre o Homem e a Natureza como em mais nenhuma poesia se manifestou. Uma singularidade que não deixa de ter o mais alto significado, explicando também, em boa medida, uma das razões porque a nossa tradição sempre foi, como não poderia deixar de ser, relutante à adopção das filosofias nórdicas onde o mal é múltiplas vezes colocado na própria natureza.

De D. Dinis e, sobretudo, de Santa Isabel, ficou-nos o Culto do Espírito Santo, tradição que alguém, arrevesadamente, já interpretou como cripto-judaica mas, seja como for, herança alguma significativa de catarismo, como mais tarde do protestantismo, subsistiu entre nós. E a esta singularidade não se poderá deixar vez alguma também de atender.

Há sempre, haverá sempre, uma natural tensão entre a Filosofia e a Religião, sendo primado da Filosofia a liberdade e primado da Religião a revelação, assumindo aqui particular relevo a consequentemente a autoridade.

Deplora Miguel Duarte Bruno o facto de o liberalismo ser historicamente acusado de destruir a religião e a autoridade. Mas assim foi, ou, pelo menos, em parte, assim foi.

De um ponto de vista histórico, houve múltiplos liberalismos, liberalismo inglês e liberalismo francês, por exemplo, não são um e o mesmo, etc. De qualquer modo, o que importa aqui notar é, por um lado, o facto de o liberalismo ter surgido, de facto, como uma certa reacção á Igreja e à sua consequente autoridade, conduzindo muitas vezes até a excessos anti-clericais, o facto desses mesmos liberalismos se terem, de modo geral, confinado a doutrinas políticas e económicas mas sem ascenderem, na quase totalidade dos casos, a uma verdadeira filosofia da liberdade.

Sendo como seja, não se me afigura particularmente significativo ou importante. Minudências históricas. O importante é, nós, enquanto portugueses percebermos a nossa singularidade e sabermos reflectir, meditar e pensar a nossa mais verdadeira Filosofia da Liberdade como Doutrina do Espírito.

Sabemos não poder contar com a Universidade, a mais anti-nacional instituição portuguesa da actualidade. Desde O Problema da Filosofia Portuguesa, de Álvaro Ribeiro, ou seja, há bem mais de sessenta anos, que o diagnóstico está feito e a solução exposta. A Universidade, hoje, neste particular, é um vazio e acabará por se desfazer por si. Não merece a nossa preocupação. O que não podemos é deixar de pensar como portugueses, sabendo como são, por vezes, ínvios os caminhos do Espírito. Cumpre-nos quanto nos cumpre.

Longo vai este texto que se pretendia breve síntese mas, antes de terminarmos importará ainda reforçar o seguinte. Por um lado, quando se afirma devermos atender às três tradições do livro, é sobretudo para podermos ter plena e bem firmada consciência da nossa singularidade, não por quaisquer razões de erudição histórica. Para além disso, importa igualmente ter sempre em consideração que a tão apregoada convivência entre Cristãos, Judeus e Árabes, também nem sempre foi tão convivente quanto por vezes se faz crer, conduzindo a que muitos autores hoje tidos como árabes, pelo seu nome, não fossem senão moçárabes por razões políticas, como o caso, entre muitos outros do célebre Ibn Hazam, como documenta Sanchez Albornoz.

Acima de tudo, Portugal e a Filosofia Portuguesa. O resto que venha por acréscimo ou não venha.

Post Scriptum: Muitas outras questões ficaram, entretanto, por abordar, como é natural, mas, quem sabe, em próxima oportunidade, tão breve quanto possível, não deixaremos de retomar o diálogo.

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