sexta-feira, 15 de maio de 2009

Portugal, a União Europeia e a Turquia


Antonio Beato, Fonte do sultão Mahmoud, Constantinopla, 1854


Em visita oficial á Turquia, o Presidente da República Portuguesa, terá afirmado, segundo relato dos jornais, sentir-se «como em casa». Compreender-se-á a intenção de simpatia e familiaridade mas, não obstante, não sabemos se será muito adequado um Presidente da República, a qualquer Presidente da República afirmar-se «em casa» quando em visita a terceira nação estrangeira. O que é que tal poderá significar? Que sente a «coisa pública» turca também como sua, pela qual lhe cumpre zelar? Que só por contingências do destino preside à «coisa pública portuguesa mas, na verdade, para si, Portugal e Turquia é tudo o mesmo, i.e., sem distinção de civilização, de cultura de história?

Ao Presidente da República Portuguesa não cumpre sentir-se «em casa» na Turquia, por mais razões sentimentais que encontre para tal justificar, mas apenas como uma ilustre e, espera-se que respeitada, visita. Uma visita de estado é cousa muito distinta de uma amena visita turística. Que o Senhor Presidente da República enquanto pessoa singular se sinta «em casa» na Turquia, é irrelevante do ponto de vista do Estado. Que o afirme enquanto e na qualidade de Presidente da República é, exactamente, falta de sentido de Estado e de quanto «representação» deveras significa.

Ficaria muito bem ao Senhor Presidente da República afirmar o mais alto respeito pelo antigo Império Otomano e pela actual Turquia, respeito tão mais alto quanto firmado por todos os épicos combates do passado, como sabemos também, a mais verdadeira forma de criar verdadeiro respeito entre os povos quando leal e corajosamente realizados.

Se a intenção do Senhor Presidente da República era, como parece ter sido e ser ainda, a de aproximar a Turquia à Europa, bem podia lembrar a aliança anglo-turca para combater os portugueses no Índico ao tempo de Afonso de Albuquerque, dando-se então uma das mais famosas e formidáveis batalhas navais da história, entre as mais poderosas e avançadas esquadras da época, ao largo de Ormuz. É certo, nós tínhamos do nosso lado uma extraordinária figura como Afonso de Albuquerque mas o ponto é apenas de tornar claro como, desde sempre, os Turcos e o Império Otomano, de um modo ou outro, sempre se interligam com a própria história da Europa.

Como é evidente, esse é apenas um exemplo entre muitos mas que serve também para lembrar aos esquecidos as épicas batalhas não foram, como hoje muitos gostam de afirmar para desvalorizar a acção dos portugueses de então, entre uma avançada esquadra europeia e uns quantos grupos de «barquitos a remos» de uns quantos desgraçados e pobres pescadores do litoral indiano. E o mais estranho é, nós, portugueses, chegarmos quase a acreditar nestes muito intencionais disparates.

Apesar de tudo quanto anteriormente dito, o importante é a defesa e apoio de Portugal à entrada da Turquia na União Europeia, expressa pelo Presidente da República. Questão relevante, da mais alta relevância, infelizmente, muito pouco debatida, mesmo por essa Europa sempre mais preocupada a discutir e a enaltecer Obama e a pseudo nova América do que a pensar em si e por si.

Todavia, lendo a entrevista do Presidente da República ao jornal Today’s Zaman, de preparação e antecedendo imediatamente o início da sua viagem de Estado, também compreendemos, com facilidade, quão frágeis são as razões e justificações de tal posição.

Na realidade, a entrevista ao jornal Today’s Zaman pode ser entendida como uma síntese de antecipação onde se glosam já todos os principais temas expostos nos vários discursos proferidos pelo Presidente da República ao longo da sua estadia em Istambul, sede do antigo Império Otomano.

Em primeiro lugar, a questão da adesão da Turquia à União Europeia. Afirma o Presidente da República: «Penso que até agora a Turquia não terá muitas razões de queixa, tendo em atenção que muitas outras negociações de adesão foram extremamente difíceis. Portugal, por exemplo, teve que esperar que as negociações com a Espanha fossem finalizadas».

Não cremos que muito descanse os turcos o conhecimentos das dificuldades sentidas por Portugal nas negociações de adesão à então Comunidade Económica Europeia.

Colocando a questão em perspectiva, como se costuma dizer, talvez importe não esquecer também a assinatura do primeiro Acordo de Associação firmado pela Comunidade Europeia com Turquia em 1963, conhecido como o Acordo de Ancara, complicado, sem dúvida, pela invasão de Chipre em 1974. No entanto, o pedido formal de Adesão data de 1987, tendo sido instituídos os critérios de adesão em 1993 mas quando se procedeu à abertura de negociações dos dez novos candidatos à União Europeia, em 1997, a Turquia continuou excluída, vindo a efectiva abertura de negociações a verificar-se somente em 2005, embora o Conselho Europeu de Helsínquia houvesse reconhecido já, em 1999, a inquestionável vocação europeia da Turquia, se assim podemos dizer.

Por outras palavras, a situação da Turquia, no que às negociações com a União respeita, é distinta do que sempre foi a situação portuguesa. Tivemos que esperar o términos das negociações com Espanha para se dar a nossa admissão? Tivemos. Mas isso não augurava nada de bom, ¬ como os políticos e negociadores da época deveriam ter visto e acautelado e não parece terem visto nem acautelado. Bem pelo contrário. Na verdade, a Ibéria, vista como um todo, uno e único, interessa a todos, espanhóis e europeus, menos a Portugal. Mas quem se interessa por Portugal?...

Seja como for, independentemente dessas pequenas questões de processos de adesão, mais significativas serão as razões e justificações apresentadas pelo Presidente da República na defesa da adesão da Turquia à União Europeia. E que defende o Presidente da República? Defende que a Turquia deve fazer parte da União Europeia porquanto, «se pretendemos uma Europa com maior firmeza no palco internacional, que tenha uma opinião influente quanto à paz, segurança e estabilidade, então a Europa precisa da Turquia».

Para além disso, aduz ainda o Presidente da Republica o facto de a Turquia pertencer à NATO, ao Conselho da Europa, deter um posição estratégica de significativa importância tanto como «ponte entre a Europa ou Ocidente e a Ásia», relembrando Attaturk, como também como ponto e estratégica posição de controlo na passagem e transporte do abastecimento de energia à Europa, podendo assim dar igualmente um forte contributo à paz mundial, não esquecendo aqui os esforços de Ancara quer no respeita ao Afeganistão e Irão, como no eterno conflito israelo-palestino.

Serão, de per si, boas, inquestionáveis e muito louváveis razões.

No entanto, se considerarmos cada uma das muito boas, inquestionáveis e louváveis razões de per si, individualmente consideradas, não deixaremos de verificar também de verificar algumas circunstâncias interessantes. Senão vejamos.

- NATO: Aparentemente, o facto de a Turquia ser membro da NATO afigura-se, senão como forte motivo para a sua igual e automática integração na União Europeia, pelo menos como elemento indutor uma vez que, sendo igualmente magna preocupação da União a instituição de uma verdadeira Política de Defesa, consubstanciada num corpo efectivo, poderoso e coeso de verdadeiras Forças Armadas à escala europeia, o facto de haver, em termos europeus, uma perfeita coincidência de nações fazendo parte de ambas as organizações, sempre se afigurará como vantagem adicional, podendo ser o inverso clara desvantagem. No entanto, isto mesmo que é de tão clara evidência para Portugal, segundo a perspectiva do Presidente da República, está longe de o ser para nações principalmente como França e Alemanha. Porquê?...

- Situação geográfica estratégica, «ponte entre a Europa e a Ásia», ponto fulcral de passagem do abastecimento energético à Europa: Indiscutível, sobretudo visto, no último caso, numa perspectiva centro-europeia. Argumentos, todavia, que, uma vez mais, não se afiguram suficientes para comover nem franceses nem alemães.

- Contributo para a paz: Desde a pronta, imediata e emprenhada participação na Aliança que combateu a invasão do Koweit pelo Iraque, até aos actuais e já referidos esforços em relação ao Afeganistão, Irão e Médio Oriente, salvo o pequeno percalço com os Estados Unidos, por diferentes razões, na invasão em 2003, além, como é natural, dos actuais esforços de reconciliação com a Arménia, e mesmo alguns progressos em relação aos Curdos, hoje ninguém coloca em causa o efectivo contributo da actual Turquia para paz. E não obstante, bem conhecemos já a posição de franceses e alemães.

Neste enquadramento, interessante teria sido perceber a posição de Portugal, afirmada pelo seu Presidente da República, no que respeita às ambiguidades europeias no que respeita à adesão da Turquia à União.

Na verdade, o problema turco, como poderemos designar, revela muito mais as contradições internas da União Europeia do que qualquer efectivo problema entre a União Europeia e a Turquia, stricto sensu, resultando as dificuldades de negociação, acima de tudo, do desnorte da própria União Europeia nos dias de hoje, não sabendo exactamente o que é nem exactamente o que pretende ser.

Sem pretensão de qualquer exaustiva exposição, bastará apontar dois ou três exemplos para entender exactamente de quanto estamos a falar e das consequentes contradições internas da União Europeia.

Antes de mais, rejeitando hoje a Europa as suas raízes cristãs, revelando em simultâneo um profundo pavor de qualquer efectiva afirmação civilizacional, termina na afirmação de num desesperado relativismo tão absurdo quanto a todo o momento logo imediatamente negado. Nega-se a entrada à Turquia por ser uma nação muçulmana? Longe disso. Nega-se a entrada à Turquia, ou, pelo menos, coloca-se em causa a sua entrada, porquanto não é o Estado Turco um Estado à imagem e semelhança do Estado das nações da União.

Sabendo o que o Estado seja logo se compreende também o absurdo da situação. Imaginarão os muito doutos e sábios arquitectos da famigerada Constituição Europeia, agora diminuída a Tratado de Lisboa, grande orgulho da nossa classe dirigente pelo simples facto de o nome do famigerado Tratado ter aposto o nome da capital de Portugal, pouco cuidando do teor anti-nacional de muito do seu clausulado, surge ex nihilo? Será que imaginam mesmo, tão imbuídos se encontram de um pragmatismo tão oco quanto ridículo e inebriados de um laicismo tão extremo quanto genuinamente idólatra, resultar o Estado, qualquer Estado, de uma qualquer toda poderosa e desenfreada vontade de poder e comando?...

Assim se figura e, não percebendo o essencial, tudo o mais decorre já sem surpresa, como a obsessão federalista cuja intenção se percebe mas cuja realidade nunca passará de mera e vã ilusão. Que pretendem mesmo? A formação de uma espécie de Pátria Europeia que não existe, nunca existiu e nem vez alguma, nos tempos que se vislumbram, poderá vir a existir?

Se as raízes cristãs da Europa para nada contam, fará sentido referir as raízes muçulmanas e a consequente prática actual, como dificuldade para o avanço das negociações? Se afirmação civilizacional não há hoje já na Europa, quanto se opõe em relação à Turquia? A Carta dos Direitos Humanos e o Iluminismo? E tal não significa, afinal, a sempre a mesma cândida ilusão ou real consciência de uma mínima superioridade civilizacional, hoje talvez referida apenas, em mais humildes termos, como laica superioridade moral? E não é exactamente essa suposta superioridade moral, como sempre o foi, que permite e justifica impor uma muito europeia visão do mundo a todos? Em nome de quê, da louca, arbitrária e vazia laicidade?

Fora a União Europeia menos ambiciosa e mais realista, restringindo-se ao que deveria ser, uma Comunidade Económica, acima de tudo, sem as disparatadas veleidades federalistas e tudo seria talvez não apenas mais fácil como bem mais profícuo.

A visita do Presidente da República Portuguesa não foi feita em nome da União Europeia, é certo, mas em nome de Portugal _ o que sempre louvamos e enaltecemos. No entanto, argumentando como argumentou, de um ponto de vista da União Europeia, cumprir-lhe-ia ter ido mais longe, esclarecendo tanto a União Europeia quanto a Turquia das verdadeiras e mais fundas razões porque se entende dever a Turquia fazer parte da União Europeia, deduzindo os correspondentes princípios e estabelecendo a correlativa doutrina, sem se ficar, como se ficou, por meras generalidades e declarações de princípio sem consequência. Porque o drama, hoje, é tão só este: mesmo que a Turquia cumpra todos os requisitos impostos pelos designados «Dossiers em Aberto», nada garante a sua entrada na União. É isso quanto está em causa, é esse o risco, é esse o drama, e não teria sido irrelevante se o Presidente da República tivesse aproveitado para colocar um pouco de bom senso na cabeça dos supostos sábios europeus.

Não fez, porém, como tampouco se lhe ouviu qualquer declaração feita em nome e na perspectiva de Portugal. Porque defende realmente Portugal a entrada da Turquia na União? Em nome das ditas boas relações seculares que não se sabe o Senhor Presidente queria mesmo dizer seculares se centenárias?...

Como é evidente e hoje está na moda, a visita, mais do que uma visita de Estado, no mais alto sentido da expressão, era, foi, uma Embaixada Económica. Hoje a Economia tudo domina e grande regozijo sempre se manifesta quando supostos milionários negócios se vislumbram acenarem sorridentes no horizonte.

Não deixando de sublinhar a primazia para Portugal da sua inserção na União Europeia, o Presidente da República não deixou de acenar pateticamente com a CPLP, afirmando constituir-se Portugal, por essa via, como porta de entrada por excelência para a entrada em mercados como os de Angola e Moçambique, como se uns e outros, precisassem de Portugal, seja para o que for, nesse capítulo, assim reduzindo também, de uma tirada só, a CPLP a mais pura das irrelevâncias.

E mais do que tudo isto, se procurarmos mais saber do alto pensamento do Senhor Presidente da República, visitando o designada Página Oficial da Presidência da República Portuguesa, para além de podermos seguir, a passo e passo, a múltiplas deslocações, recepções, banquetes e discursos proferidos durante a toda a visita, logo somos surpreendidos por algo tão extraordinário quanto significativo facto: afinal, por tudo quanto aí é exposto, ficamos a saber, com mediana claridade, sem margem para quaisquer dúvidas, dever-se a formação da suposta doutrina nacional no que à entrada da Turquia na União Europeia respeita, a dois artigos da muito respeitada revista britânico de assuntos económicos, a prestigiada The Economist!...

Triste e patético, pateticamente triste, tristemente patético.

Tudo está dito. Tudo, afinal, explicado queda.

Triste e patético, pateticamente triste, tristemente patético.


1 comentário:

Madalena Lello disse...

“Como é evidente e hoje está na moda, a visita, mais do que uma visita de Estado … foi, uma Embaixada Económica”.

Ontem, sobre a visita de Cavaco Silva à Turquia, um artigo de opinião no jornal i, escolhia para título “Negócio à boleia da política”, onde o autor assinalava, que o grupo de empresários que Cavaco levou na sua comitiva, nenhum tinha, até o momento, fechado negócio. Nada tenho a opor, bem pelo contrário, sobre futuras relações comerciais entre Portugal e a Turquia. O que de facto surpreende é até que ponto, na política actual, se perdeu a capacidade de conceber uma política pública para lá do economicismo. Hoje a política reduz-se a: PIB, prosperidade, crescimento, produção, desempenhos do mercado bolsista…Objectivos políticos abrangentes, como a Nação a História estão totalmente desacreditadas senão ridicularizadas. Numa era apolítica, onde a economia é tudo o que realmente conta, o título “Negócio à boleia da política” parece-me desajustado, porquanto vivemos numa época em que os políticos se esquecem de pensar politicamente.

Em relação à diferente posição entre Cavaco Silva e a dupla Merkel/Sarkozy, que rejeitam a entrada da Turquia na União, é mais um sinal como é urgente que a União Europeia precise e explique em que consiste a Europa hoje em dia.