Fernando Lemos, Intimidades do Chiado, 1949
«Convém que a todas as gerações seja apresentado de novo o problema de saber se existem, ou não, alguns povos interessados no desaparecimento da nação portuguesa», deixou Álvaro Ribeiro escrito no seu livro, Escola Formal, este aviso que, hoje, passados cerca de cinquenta anos, não deixando de manter o seu valor de sempre, continua tão pouco atendido como então, ou pior ainda, não suscitando senão também o mesmo típico sorriso sobranceiro de sempre dos néscios de espírito.
Recentemente, a imprensa dava a notícia da Cidade Velha de Cabo Verde passar a integrar a lista do Património da Humanidade, surgindo redigida do seguinte e aparentemente inócuo e factual modo, como sucedeu no jornal Público: «A elevação da Cidade Velha de Cabo Verde a Património Mundial da Humanidade, ontem decidia pela UNESCO, é o culminar de um projecto iniciado há uma década e distingue o primeiro núcleo populacional na ilha de Santiago. Também conhecida por Ribeira Grande de Santiago, é a primeira cidade construída por europeus nos trópicos, no século X. Erigida para servir de ponto de abastecimento para o comércio de escravos entre África e a América, foi a primeira capital do arquipélago, título que ostentou até 1770».
E depois, citando a justificação da organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, refere-nos ainda a notícia: «É um testemunho da história da presença da Europa colonial em África e da História da escravatura».
A subtileza, aparentemente inocente, de referir ter sido a Cidade Velha «a primeira cidade construída por europeus nos trópicos», ao invés de dizer, por exemplo, ter sido a primeira cidade fundada pelos portugueses nos trópicos, é notável.
De um ponto de vista estritamente factual, a afirmação é verdadeira: não deixando os portugueses de serem um dos muitos povos europeus, a substituição de um termo pelo outro, dir-se-á legítima. Todavia, para quem souber ler, também se compreende o que se pretende esconder.
Quem fala ou escreve, fala e escreve para persuadir e persuadir-se também. Quem fala ou escreve, fala ou escreve com palavras. As palavras, a escolha das palavras com que se fala e se escreve, não é, nunca é, inocente. Embora não seja possível pensar a partir das palavras, não há pensamento sem palavra.
A luta pela expressão, como diria Fidelino de Figueiredo, é sempre uma busca da palavra certa, como diria Leonardo Coimbra.
A língua é um mistério. Ao contrário do que poderão defender alemães e todos os cientistas modernos, sejam ditos linguistas ou neuro-cientistas, a língua é uma realidade de diferente ordem ou, se preferirmos, representa e afirma sempre uma diferente ordem de realidade.
Não havendo pensamento sem palavra, a palavra pode condicionar o discorrer do pensamento e, mesmo mais do que condicionar, pode mesmo conduzir o pensamento tanto aos mundos supernos quanto aos mundos infernos.
Não por acaso, tanto Toynbee como Ortega y Gasset davam como uma das origens ou início da queda do Império Romano, a degradação da língua, tal como hoje vemos suceder com a língua portuguesa, procurando-se talvez, pela degenerescência da língua, conduzir os portugueses a equivalente degenerescência mental.
Questões mais graves e fundas do que ultrapassam a notícia supracitada.
Na notícia supracitada, devemos atender, antes de mais, ou facto de a mesma, embora não assinada, se encontrar redigida por um jornalista do jornal, um jornalista presumivelmente português, ou seja, embora se saiba pouco mais constituir do que uma tradução dos noticiários internacionais, a notícia assim redigida passa por veicular o entendimento que nós, portugueses, temos da nossa História ou de como, hoje, deixamos deturpar o entendimento da nossa História de acordo com esses mesmo interesses internacionais.
O fenómeno, sobretudo quanto aos Descobrimentos respeita, não é novo. Basta lembrar os notáveis e incansáveis trabalhos de um Visconde de Santarém, de um Joaquim Bensaúde, dos irmãos Armando e Jaime Cortesão ou ainda de um Gago Coutinho, desfazendo muito dos disparates ditos sobre os Descobrimentos, para percebermos do que se está a falar. Disparates ditos, porém, não apenas por ignorância, mas com a expressa intenção de denegrir a imagem dos portugueses e a sua primazia no Descobrimento dos novos mundos, defendendo-se teses tão peregrinas como a de termos aprendido a navegar com os alemães, ou, pelo menos, com um suposto sábio cujo nome nem vale a pena recordar.
Mais recentemente, a famigerada Europália em Portugal, em 91, mais não foi senão um renovado pretexto para dar os Descobrimentos como obra da Europa e não de Portugal e, reconhecido seja, de Espanha também.
Porque ainda não muito distante, todos nos recordaremos, com certeza, da famosa polémica gerada pelo livro de Mascarenhas Barreto, Cristóvão Colombo Agente Secreto de D. João II, parecendo ser uma ofensa nacional a defesa da tese da nacionalidade portuguesa de Cristóvão Colombo.
Muito mais importante do que a tese da nacionalidade era a tese, tão plausível quanto justificada, de Cristóvão Colombo, mas logo os universitários, de Vasco Graça Moura a Luís Albuquerque, vieram a terreiro refutar e repudiar furiosamente tais teses como se as mesmas mais não fossem senão pura iniquidade, mas aceitando, entretanto, doutoramentos honoris causa em universidades italianas, levando Mascarenhas Barreto a proferir a célebre piada segundo a qual «os novos dispunham-se a aceitar doutoramentos honoris causa como os antigos régulos aceitavam despertadores».
A tese de Cristóvão Colombo ter sido um agente secreto de D. João II, não só não é disparatada como é perfeitamente consentânea com toda a política, obra e modus operandi desse grande monarca, o primeiro talvez a criar um verdadeiro e extraordinário Sistema de Informações e Contra-Informação, de um Estado europeu, bem como o primeiro a impor, por razões estritamente estratégicas, uma «política de sigilo» das mais exigentes e rigorosas que alguma vez terá havido na História, por razões estritamente estratégicas. Mas, é evidente, quando se pretende fazer crer que os Descobrimentos, feitos pelos portugueses, mais não foram senão obra do acaso quando não obra europeia em que nós mais não servimos senão como uma espécie de intermediários, carne para canhão ou alimento para os peixes, importa, com certeza, nada disso importa considerar, ou lá iriam as ditas teses por água abaixo.
Todos, hoje, falamos de Portugal como uma nação deprimida. Todos falamos, é certo, mas poucos atendemos já às razões de assim ser. Quando deixamos, sistemática e metodicamente, denegrir quanto fomos e fizemos, quando vemos actuarem muito de entre nós como puros agentes, nocentes e inocentes, de quem apenas pretende a nossa destruição enquanto nação independente, quando não sabemos já olhar para o passado para, compreendendo o espírito implícito na nossa História, podermos pensar o futuro, como não estarmos nós, como povo, deprimidos?
A supracitada notícia, embora significativa, será apenas um pequeno exemplo, sem dúvida. Mas estes pequenos e subtis exemplos, passando quase desapercebidos, não deixam, por vezes, de terem as mais vastas e profundas repercussões. Quando aceitamos, como subtilmente se pretende que todos deduzam da notícia, não terem tido os Descobrimentos outra finalidade senão a escravatura, começamos a perceber também onde nos querem levar. Quando começamos a aceitar tudo isto passivamente, começamos a perder-nos e, se nos perdermos por isto, também poderemos dizer que nos perderemos merecidamente porque um povo que aceita tudo isto e não saiba já pensar a sua razão de ser e defender-se consequentemente, não merece, de facto, sobreviver, mais sendo senão sinal de que está já morto e «dissolvido em sua existência histórica».
«Convém que a todas as gerações seja apresentado de novo o problema de saber se existem, ou não, alguns povos interessados no desaparecimento da nação portuguesa», deixou Álvaro Ribeiro escrito no seu livro, Escola Formal, este aviso que, hoje, passados cerca de cinquenta anos, não deixando de manter o seu valor de sempre, continua tão pouco atendido como então, ou pior ainda, não suscitando senão também o mesmo típico sorriso sobranceiro de sempre dos néscios de espírito.
Recentemente, a imprensa dava a notícia da Cidade Velha de Cabo Verde passar a integrar a lista do Património da Humanidade, surgindo redigida do seguinte e aparentemente inócuo e factual modo, como sucedeu no jornal Público: «A elevação da Cidade Velha de Cabo Verde a Património Mundial da Humanidade, ontem decidia pela UNESCO, é o culminar de um projecto iniciado há uma década e distingue o primeiro núcleo populacional na ilha de Santiago. Também conhecida por Ribeira Grande de Santiago, é a primeira cidade construída por europeus nos trópicos, no século X. Erigida para servir de ponto de abastecimento para o comércio de escravos entre África e a América, foi a primeira capital do arquipélago, título que ostentou até 1770».
E depois, citando a justificação da organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, refere-nos ainda a notícia: «É um testemunho da história da presença da Europa colonial em África e da História da escravatura».
A subtileza, aparentemente inocente, de referir ter sido a Cidade Velha «a primeira cidade construída por europeus nos trópicos», ao invés de dizer, por exemplo, ter sido a primeira cidade fundada pelos portugueses nos trópicos, é notável.
De um ponto de vista estritamente factual, a afirmação é verdadeira: não deixando os portugueses de serem um dos muitos povos europeus, a substituição de um termo pelo outro, dir-se-á legítima. Todavia, para quem souber ler, também se compreende o que se pretende esconder.
Quem fala ou escreve, fala e escreve para persuadir e persuadir-se também. Quem fala ou escreve, fala ou escreve com palavras. As palavras, a escolha das palavras com que se fala e se escreve, não é, nunca é, inocente. Embora não seja possível pensar a partir das palavras, não há pensamento sem palavra.
A luta pela expressão, como diria Fidelino de Figueiredo, é sempre uma busca da palavra certa, como diria Leonardo Coimbra.
A língua é um mistério. Ao contrário do que poderão defender alemães e todos os cientistas modernos, sejam ditos linguistas ou neuro-cientistas, a língua é uma realidade de diferente ordem ou, se preferirmos, representa e afirma sempre uma diferente ordem de realidade.
Não havendo pensamento sem palavra, a palavra pode condicionar o discorrer do pensamento e, mesmo mais do que condicionar, pode mesmo conduzir o pensamento tanto aos mundos supernos quanto aos mundos infernos.
Não por acaso, tanto Toynbee como Ortega y Gasset davam como uma das origens ou início da queda do Império Romano, a degradação da língua, tal como hoje vemos suceder com a língua portuguesa, procurando-se talvez, pela degenerescência da língua, conduzir os portugueses a equivalente degenerescência mental.
Questões mais graves e fundas do que ultrapassam a notícia supracitada.
Na notícia supracitada, devemos atender, antes de mais, ou facto de a mesma, embora não assinada, se encontrar redigida por um jornalista do jornal, um jornalista presumivelmente português, ou seja, embora se saiba pouco mais constituir do que uma tradução dos noticiários internacionais, a notícia assim redigida passa por veicular o entendimento que nós, portugueses, temos da nossa História ou de como, hoje, deixamos deturpar o entendimento da nossa História de acordo com esses mesmo interesses internacionais.
O fenómeno, sobretudo quanto aos Descobrimentos respeita, não é novo. Basta lembrar os notáveis e incansáveis trabalhos de um Visconde de Santarém, de um Joaquim Bensaúde, dos irmãos Armando e Jaime Cortesão ou ainda de um Gago Coutinho, desfazendo muito dos disparates ditos sobre os Descobrimentos, para percebermos do que se está a falar. Disparates ditos, porém, não apenas por ignorância, mas com a expressa intenção de denegrir a imagem dos portugueses e a sua primazia no Descobrimento dos novos mundos, defendendo-se teses tão peregrinas como a de termos aprendido a navegar com os alemães, ou, pelo menos, com um suposto sábio cujo nome nem vale a pena recordar.
Mais recentemente, a famigerada Europália em Portugal, em 91, mais não foi senão um renovado pretexto para dar os Descobrimentos como obra da Europa e não de Portugal e, reconhecido seja, de Espanha também.
Porque ainda não muito distante, todos nos recordaremos, com certeza, da famosa polémica gerada pelo livro de Mascarenhas Barreto, Cristóvão Colombo Agente Secreto de D. João II, parecendo ser uma ofensa nacional a defesa da tese da nacionalidade portuguesa de Cristóvão Colombo.
Muito mais importante do que a tese da nacionalidade era a tese, tão plausível quanto justificada, de Cristóvão Colombo, mas logo os universitários, de Vasco Graça Moura a Luís Albuquerque, vieram a terreiro refutar e repudiar furiosamente tais teses como se as mesmas mais não fossem senão pura iniquidade, mas aceitando, entretanto, doutoramentos honoris causa em universidades italianas, levando Mascarenhas Barreto a proferir a célebre piada segundo a qual «os novos dispunham-se a aceitar doutoramentos honoris causa como os antigos régulos aceitavam despertadores».
A tese de Cristóvão Colombo ter sido um agente secreto de D. João II, não só não é disparatada como é perfeitamente consentânea com toda a política, obra e modus operandi desse grande monarca, o primeiro talvez a criar um verdadeiro e extraordinário Sistema de Informações e Contra-Informação, de um Estado europeu, bem como o primeiro a impor, por razões estritamente estratégicas, uma «política de sigilo» das mais exigentes e rigorosas que alguma vez terá havido na História, por razões estritamente estratégicas. Mas, é evidente, quando se pretende fazer crer que os Descobrimentos, feitos pelos portugueses, mais não foram senão obra do acaso quando não obra europeia em que nós mais não servimos senão como uma espécie de intermediários, carne para canhão ou alimento para os peixes, importa, com certeza, nada disso importa considerar, ou lá iriam as ditas teses por água abaixo.
Todos, hoje, falamos de Portugal como uma nação deprimida. Todos falamos, é certo, mas poucos atendemos já às razões de assim ser. Quando deixamos, sistemática e metodicamente, denegrir quanto fomos e fizemos, quando vemos actuarem muito de entre nós como puros agentes, nocentes e inocentes, de quem apenas pretende a nossa destruição enquanto nação independente, quando não sabemos já olhar para o passado para, compreendendo o espírito implícito na nossa História, podermos pensar o futuro, como não estarmos nós, como povo, deprimidos?
A supracitada notícia, embora significativa, será apenas um pequeno exemplo, sem dúvida. Mas estes pequenos e subtis exemplos, passando quase desapercebidos, não deixam, por vezes, de terem as mais vastas e profundas repercussões. Quando aceitamos, como subtilmente se pretende que todos deduzam da notícia, não terem tido os Descobrimentos outra finalidade senão a escravatura, começamos a perceber também onde nos querem levar. Quando começamos a aceitar tudo isto passivamente, começamos a perder-nos e, se nos perdermos por isto, também poderemos dizer que nos perderemos merecidamente porque um povo que aceita tudo isto e não saiba já pensar a sua razão de ser e defender-se consequentemente, não merece, de facto, sobreviver, mais sendo senão sinal de que está já morto e «dissolvido em sua existência histórica».
1 comentário:
Lamentavelmente, nada do que aqui se escreve sobre Colombo é verdade.
O facto da contribuição portuguesa para a abertura da Europa ao Mundo ser frequentemente ignorada, minimizada ou ridicularizada pelos ignorantes noutros países em nada justifica que, pelo oposto, façamos da nossa história aquilo que ela não é. Foi contra uma e outra atitude que Vasco da Graça Moura e sobretudo Luís de Albuquerque e Pinheiro Marques se manifestaram.
Há cem anos que amadores persistem neste erro, dando-lhe voltas cada vez mais mirabolantes. Com isso querem elevar a História de Portugal mas só conseguem denegrir a Historiografia Portuguesa.
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