domingo, 12 de julho de 2009

Ainda do Liberalismo Enquanto Doutrina do Espírito

Chema Madoz


Miguel Bruno Duarte, ao surpreender-se na Leonardo por eu me ter surpreendido com o seu comentário a um anterior texto, «Ainda da Filosofia Portuguesa e Árabe», publicado há semanas, surpreendeu-me de novo, fazendo-me sorrir.

O «esclarecimento» de Miguel Bruno Duarte, é, como seria de esperar, um excelente texto de síntese, glosando algumas das principais teses de F. Hayek e, sobretudo, de Orlando Vitorino no que ao liberalismo económico respeita. Todavia, para não perdermos o fio ao diálogo, importa, antes de mais, entendermos devidamente o enquadramento em que este mesmo diálogo surgiu.

No referido texto, talvez insuficientemente exposto, admite-se, quanto se procurava era exactamente dar nota de não poder confinar-se o liberalismo, entendido como doutrina do Espírito, ao liberalismo económico, sob pena de se subsumir na ordem prática quanto pertence a uma ordem superior da realidade, afirmando-se ipsis verbis: «Assim se compreenderá também, cremos, mais facilmente a importância que atribuímos ao Liberalismo, mais do que doutrina económica, mais do que doutrina política, como verdadeira doutrina do Espírito».

Foi num pertinente comentário a esse texto que Miguel Bruno Duarte deixou escrito, « … aqui fica, para irmos pensando, o desafio decorrente da primeira tese filosófica do liberalismo, a saber: onde não há liberdade económica, não pode haver liberdade individual e política», exacta origem da primeira surpresa porquanto não se afigura como possa ser tida a tese, «onde não há liberdade económica, não pode haver liberdade individual e política», a «primeira tese filosófica do liberalismo».

Haverá outra possível interpretação para a citada frase de Miguel Duarte Bruno? Haverá. Poderemos, em boa verdade, entender a frase como querendo significar constituir-se a afirmação, «onde não há liberdade económica, não pode haver liberdade individual e política», não «a primeira tese filosófica do liberalismo», mas tão só o desafio, que importa pensar, decorrente «da primeira tese filosófica do liberalismo».

Sendo esta segunda interpretação a exacta, não se diz, porém, qual essa «primeira tese filosófica» da qual decorre o «desafio» que importa pensar, ou seja, o de «onde não houver liberdade económica não poder haver liberdade individual e política», nem, no «esclarecimento» que Miguel Bruno Duarte entendeu dever prestar, entendeu dever esclarecer.

Todavia, mesmo sendo esta segunda interpretação, a interpretação correcta, ainda assim, embora talvez por desconhecimento do que entende Miguel Bruno Duarte como «primeira tese filosófica do liberalismo», mas também independentemente disso, não vislumbramos, seja ela qual for, razão necessária para se deduzir como primordial desafio a ser pensado, hoje, a citada tese de Hayek. Exactamente quanto, sem demasiada pretensão, julgamos ter ficado também devidamente exposto no nosso anterior texto, «Liberdade».

Miguel Bruno Duarte inicia o seu «esclarecimento» relembrando a natural distinção anglo-saxónica entre «liberty» e «freedom», bem como a «tradução orlandina de Ivone de Moura», como «liberdade principial» e «liberdade individual».

Não obstante o rigor filosófico da tradução, pelas razões a seguir expostas, julgamos talvez preferível traduzir mais sinteticamente, apenas por «liberdade» e «liberdade política».

Entendendo a liberdade como princípio, não podemos senão entender a mesma liberdade sempre como liberdade principal e, consequentemente, referir a mesma liberdade apenas como liberdade ou liberdade principial, é sempre um e o mesmo quanto se significa, não se justificando o uso da segunda expressão senão em casos particulares de necessidade de esclarecimento de conceitos.

No que respeita à «liberdade individual», a situação é distinta.

Sendo a todos dada a liberdade, este surge ao homem como um processo de gradual iniciação na mesma liberdade, pelo pensamento, o que poderá ser dito também como um processo de gradual libertação.

Como também relembrámos, afirmando Leonardo Coimbra ser o homem livre por interpor, entre a sensação e a acção, o pensamento, dava também como responsabilidade da educação, formar para a liberdade, o que, de diferente modo, podemos considerar igualmente como significando educar para a individualidade ou entender o processo de educação sempre como um processo de crescente individuação.

Ora, entendendo a «liberdade individual» primordialmente como significando, de outro modo, o processo de individuação, pelo pensamento, afigura-se-nos poder ser perigoso, por equívoco, designar por «liberdade individual» quanto designamos, ou entendemos dever ser apenas designado, como «liberdade política», i.e., a autonomia concedida ao homem para a afirmação da sua individualidade na existência. Ou, por outras palavras, sempre quando e enquanto ao homem for dado pensar, a «liberdade individual» não lhe pode ser negada, dispondo ou não dispondo, sendo-lhe concedida ou não, a designada «liberdade política».

Acusar-nos-á Miguel Bruno Duarte de precipitarmos o juízo quando, firmado na esfera da liberdade principial, pecaremos por não realizarmos, «ao modo orlandino, a relação que se situa entre o homem e a transcendência, ou entre o mundo real das relações vividas e a teoria pura do espírito».

Procurando demonstrar, por um lado, a nossa precipitação e, por outro, a razão de dar como primordial a supracitada tese de Hayek, adianta ainda Miguel Duarte Bruno: «uma coisa é certa, como já, íntima e pessoalmente, o reconhecera Orlando Vitorino: o de que sem pensamento não há mediação conceitual entre a propriedade do corpo do homem, ele próprio ideia ou arquétipo de todas as outras espécies de propriedade, e o puro domínio da liberdade. Ou melhor: a propriedade identifica-se com a liberdade, justamente porque se «a propriedade do corpo é a imagem perfeita do conceito e se o conceito, por pertencer ao domínio do pensamento, pertence ao puro domínio da liberdade, uma vez que só o pensamento é livre, nela reside a realização natural e espontânea da liberdade no mundo».

Recorrendo a Orlando Vitorino, coloca-nos Miguel Bruno Duarte numa situação difícil, quase de imediata inferioridade, quer por ter sido Orlando Vitorino o mais singular dos discípulos de Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro e José Marinho, como talvez o mais notável dos filósofos da sua geração, maior entre os maiores, quer por não ser fácil sintetizarmos tão alto pensamento sem, de um modo ou outro, corrermos o risco de uma extrema e desadequada simplificação.

Todavia, partindo da sua admirável obra, «Exaltação da Filosofia Derrotada», obra nem sempre devidamente atendida, mesmo dentro do círculo dos mais próximos, como, surpreendentemente se comprova na derradeira obra, «Do Amor e da Morte», de outra figura notável como foi Afonso Botelho, de onde Miguel Bruno extrai a precedente citação, logo compreendemos como, para Orlando Vitorino há três espécies de propriedade: a propriedade absoluta, a do corpo do homem, arquétipo ou ideia das outras espécies de propriedade, inalienável, indivisível e perpétua; a propriedade perfeita, a das coisas naturais, alienável, mas não como os produtos naturais, divisível no limite da divisibilidade permitir a reconstituição de uma nova unidade e, não sendo perpétua, sempre se renova e sempre suporta as perturbações que o homem decidir sujeitá-la; propriedade imperfeita, a dos produtos industriais, também dos produtos da terra, divisível, alienável, destinando-se mesmo a sê-lo, de duração fugaz, existindo para não existir, para se gastar, corromper e consumir.

Como Orlando Vitorino viu, também, como nos expõe, uma das fraquezas do pensamento do «liberalismo económico» ao longo do tempo, reside exactamente na circunstância de nunca se ter atendido devidamente à «categoria económica» da propriedade, modalidade da categoria aristotélica de substância, não se firmando assim num todo uno e coerente.

Para além disso, a analogia estabelecida entre o corpo humano como o arquétipo ou ideia de toda a propriedade, é iluminante, não apenas para a melhor compreensão do pensamento inerente ao liberalismo económico mas para todo pensamento ou conhecimento da realidade.

Porém, o mais notável, o ponto crucial, afigura-se-nos ser a determinação da propriedade, estabelecendo uma relação entre o homem e as coisas, residir não nas coisas mas nas próprias coisas. Por outras palavras, toda a propriedade exige um proprietário.

Porque toda a propriedade exige um proprietário? Porque é o homem que, pelo pensamento, dá existência ao mundo, porque o homem dá, às mesmas coisas, pelo pensamento, o conhecimento de si, tornando manifesto e real quanto lhes é próprio.

Se atendermos a quanto acaba de ficar exposto, com facilidade poderá haver renovada compreensão das palavras de Sampaio Bruno, tido por Álvaro Ribeiro como o fundador da Filosofia portuguesa, quando, na esteira de Novalis, afirma ser finalidade do homem libertar-se, libertando consigo todos os seres e o próprio mundo, o que entendemos poder significar também dar plena realidade a toda a criação, a cada ser da criação, individualmente considerado.

Nunca esteve em causa, como não está, a importância do liberalismo económico, sobretudo na formulação que lhe foi dada por Orlando Vitorino. O que sempre esteve e está em causa é saber se é adequado dar como primacial o liberalismo económico como expressão máxima, perfeita, quase se diria absoluta, do mesmo liberalismo como doutrina da liberdade.

Na nossa interpretação, além do liberalismo económico há igualmente um liberalismo jurídico, um liberalismo político, um liberalismo religioso, um liberalismo cultural, sendo o liberalismo económico apenas uma expressão, nem talvez a mais significativa, do mesmo liberalismo enquanto doutrina da liberdade.

Assumiu o liberalismo um predomínio histórico que ainda hoje se verifica? Sem dúvida, tanto mais quanto é na existência social, se assim nos podemos expressar, que os homens vivem as formas mais imediatas da liberdade, mas é exactamente esse predomínio que, hoje, se nos afigura perigoso, reduzindo toda a doutrina liberal exclusivamente ao liberalismo económico.

A importância da defesa da liberdade económica não se nos afigura assumir hoje a imediata veemência de há trinta ou quarenta anos. Hoje, afigura-se-nos, a gravidade da situação é distinta, consistindo essencialmente na redução da política aos aspectos da administração económica, reduzindo-se mesmo toda a realidade as aspectos económicos da mesma.

Ora, não se nos afigura também ser pela liberdade económica que se ascenda à liberdade substancial, não obstante, como doutrina deduzida da primordial doutrina da liberdade, se possa afirmar conter em si uma equipotente virtualidade.

Ora, se atendermos a quanto se passa hoje à nossa volta, fácil é constatar como essa mesma redução política à economia, sem atenção a nada mais, está a corroer tudo, conduzindo inclusive ao esvaimento de Portugal.

Ora, se soubermos atender à doutrina da liberdade como doutrina do espírito, se não soubermos atender à circunstância de só pelo pensamento do homem o mundo se tornar real, se negarmos a transcendência e não soubermos reconhecer já, por conseguinte, o significado de Pátria como entidade espiritual, compreendendo como só pelo pensamento que da mesma tivermos, a mesma passível é de se tornar real, se compreendermos como só será possível tudo isto ultrapassar se formarmos os homens para a liberdade e a individualidade, de acordo com a melhor tradição da Filosofia Portuguesa, só então possível será vislumbrar salvação para esta aparentemente inexorável decadência em que nos encontramos.

É essa a minha preocupação que nenhum «liberalismo económico», de per si, e somente de per si, resolve.

Todavia, se, como afirmava José Marinho, bastando haver 500 portugueses para Portugal subsistir, acreditando nós na existência actual desses mesmos 500 portugueses, 500 portugueses que sabem ainda pensar a Pátria portuguesa, acreditamos nem tudo estar ainda perdido.

Post Scriptum: Porque afirmámos termos sorrido à leitura do texto de Miguel Bruno Duarte? Porque, inesperadamente, Miguel Bruno Duarte, a determinado momento, pareceu assumir quanto se havia escrito no texto anterior, como uma crítica pessoal, reagindo, assim, em consequência, ou seja, demasiado pessoalmente e, por momentos, vislumbrei poder este diálogo, em que dificilmente poderemos discordar no que é essencial, transformar-se numa espécie de quezília universitária de susceptibilidades feridas, sobrelevando as questões pessoais, de status e reconhecimento de autoridade, tudo o mais, incluindo a substância do próprio diálogo. Tal imagem, embora fugaz, não pôde, no entanto, deixar de me fazer sorrir.

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