domingo, 20 de junho de 2010

Comentário


José Manuel Rodrigues




«Não rir, não chorar, tudo tentar compreender»
Bento Espinosa


Quando Miguel Bruno Duarte refere o suposto carácter sentimentalista do nosso comentário respeitante ao seu comentário à conclusão do conjunto de textos a que se deu por título «O Drama de Portugal», não pudemos evitar um suave sorriso.

O sentimentalismo é uma característica em que os portugueses têm uma tendência em cair dado constituírem-se como um povo com um carácter acentuadamente sentimental, como não deixa de ser notado por todos quantos se têm dedicado ao estudo das características do povo português.

É pelo sentimento que nos temos distinguido, entre outros aspectos, dos povos do norte da Europa onde a ausência de tal características, ou seu defeito, conduziu a um frio e abstracto, racionalismo, incapaz, no limite, de uma verdadeira compreensão da vida e da correspondente transcendência.

Nós, portugueses, não opomos pensamento e sentimento como tendencialmente sucede com nórdicos. Para nós, portugueses, o pensamento engloba sempre, como não poderia deixar nunca de englobar, o sentimento, tal se encontra luminosamente exposto por José Marinho na sua introdução à Teoria do Ser e da Verdade, «desde a sensação à ideia todo o pensamento por mais modesto liberta».

Quando, porém, essa mesma característica se dá em excesso, então sim, cai-se no sentimentalismo, correspondendo também, tendencialmente, a uma desordenação do pensamento por uma tão dominante quanto exacerbada e avassaladora emoção.

Não se nos afigurando termos caído em tal excesso e sabendo como, por vezes quanto mais detestamos no próximo é quanto não queremos reconhecer em nós próprios, sorrimos.

Tudo quanto o comentário ao primeiro comentário de Miguel Bruno Duarte pretendia acentuar era tão só a tão portuguesa virtude da esperança. Como distinguia e acentuava Álvaro Ribeiro, os portugueses, ao contrário de franceses, por exemplo, exactamente decorrente dessa mesma intrínseca virtude da esperança, não são um povo de dúvida mas de crença.

Quanto se nos afigurou inadequado o comentário de Miguel Bruno Duarte foi ter subsumido todo o universo dos membros da comunidade universitária numa espécie de mesma classe, um pouco, como referimos, como Marx fizera em relação às ditas «classes sociais».

Tal comentário, ou reparo, como se verifica pelos comentários seguintes, enfureceu a tal ponto Miguel Bruno Duarte que, possuído por uma avassaladora emoção, logo passou a subordinar todo o pensamento ao sentimento, perdendo-se, por completo, da questão essencial em debate.

O ponto essencial em debate era tão somente este: não obstante tudo quanto a Universidade, como instituição, personifica de errado, devemos sobretudo atender à individualidade de cada um dos seus membros porque, na nossa perspectiva, não é correcto nem legítimo estigmatizar cada um dos seus membros como se nada mais fossem senão a reprodução fiel e exacta de todos esses mesmos erros que verificamos serem personificados pela Universidade como instituição.

Como portugueses, e até mesmo de um ponto de vista filosófico, entendemos constituir sempre um erro inaceitável a condenação de seja quem for senão pela afirmação positiva ou negativa da sua individualidade. Condenar seja quem for apenas por se encontrar, de algum modo, ligado a uma instituição como a Universidade, afigura-se-nos um erro inaceitável.

Miguel Bruno Duarte bem podia e pode argumentar que a própria selecção verificada na Universidade sempre conduz a uma escolha que, no limite, irmana todos os escolhidos numa mesma matriz de pensamento e procedimento.

Ora, não obstante a tendencial veracidade de tal argumento, ainda assim não podemos, como portugueses e de ponto de vista filosófico, deixar de sobrevalorizar a individualidade de cada um em relação a um abstracto colectivo que poderão ou não verdadeiramente representar.

E mais do que isso, a Universidade não se resume às Faculdades de Letras e aos departamentos de Filosofia. A Universidade é mais, muito mais do que isso, a Universidade não é sequer a geração que nos precede nem sequer já a nossa geração, das quais pouco ou nada há já a esperar, mas as novas gerações que, educadas sob as condições em que todos sabemos terem sido formadas, ainda assim, mantêm, de um ponto de vista individual, um genuíno amor a Portugal e à verdade que não podemos, de forma alguma, ignorar nem, muito menos, repudiar, devendo até termos a obrigação de sabermos devidamente valorizar. É para essas gerações, novas gerações, gerações sacrificadas, sufocadas, dilaceradas por anos e anos de desnorte na Educação, que importa escrever, intervir, como vulgarmente se diz, não em nosso nome mas em nome de Portugal.

A ironia de tudo isto é que tudo isto que aqui se passa, ou seja, esta troca de comentários a resvalarem, de súbito, para a pura emoção, personalizando tudo, não deixa também de ser sina bem portuguesa, contrapartida negativa do tão característico sentimento que, exacerbado, sempre conduz à subjugação do pensamento ao sentimento, logo impedindo, por consequência, um verdadeiro diálogo, i.e., a busca da verdade através do logos.

E suprema ironia de tudo isto é tudo isto suceder quando um dos interlocutores logo afirma os típicos tiques de tudo quanto a Universidade tem de pior, tal como sucede, infelizmente, com o Miguel Bruno Duarte.

Antes de mais, o tão típico gosto universitário de sobrevalorizar a forma sobre o conteúdo, procurando sempre esmagar o interlocutor com uma suposta erudição superior e uma hipotética exigência de rigor científico completamente vazios ou, pelo menos, absolutamente irrelevantes para o diálogo em questão.

Chocado, muito chocado, pelo paralelismo entre o modo como entendemos que classificava os universitários tal como Marx classificava os indivíduos em «classes sociais», Miguel Bruno Duarte pretendendo corrigir, diz exactamente o mesmo numa expressão de suporto maior rigor «lógico» mas que, em boa verdade nada acrescenta ou corrige mas apenas expressa o típico tique universitário de alardear erudição e rigor «científico» de modo a impor de imediato ao interlocutor o estigma da ignorância e, consequentemente, a sua indignidade de dialogar num mesmo plano.

Acto imediato, quando não se entende o que o interlocutor afirma, nem esforço algum se faz para compreender, tanto mais quanto, estigmatizado já com o véu da ignorância, digno não é já senão do mais completo menospreza e desdém.

(Ao Miguel Bruno Duarte, não sendo em rigor um universitário, não o farei passar pela indelicadeza de lhe explicar o paralelismo com a biologia)

Essa típica atitude universitária é, de facto, tudo o que há de pior na instituição porquanto procede e resulta sempre na «cousificação do pensamento», para usar a expressão consagrada de Leonardo Coimbra.

Na verdade, obcecados pelo instituto do exame, os universitários vivem no pavor de serem apanhados em falta, sobrevalorizando sempre o pensamento pensado sobre o pensamento em acto.

Muitas, fortes e antigas justificações haverá para se ter chegado a tal situação e tal atitude mas, independentemente dessas mesmas justificações, hoje, quanto se verifica na Universidade é a incapacidade de ver e valorizar o erro luminoso em detrimento do acerto acéfalo.

Como indivíduo, ao homem cumpre-lhe pensar correndo o risco de errar e é sempre preferível errar de moto próprio do que acertar por mérito alheio, preceito que a Universidade não partilha e de forma alguma aceita. E é exactamente este, na nossa perspectiva, o mais grave pecado da Universidade, todos conduzindo, a pouco e pouco, a uma espécie de psitacismo e à negação da individualidade ou capacidade real de individuação.

Não menos típica atitude universitária é igualmente o gosto de se escudarem na citação avulsa e suporem que o convívio com grandes personalidades lhes confere uma especial autoridade derivada, como se autoridade alguma passível de ser alguma vez adquirida por mera osmose intelectual.

Agastado com a questão de Marx, já em plena fúria emocional, Miguel Bruno Duarte retoma em seguida, de forma extemporânea, uma questão aqui aflorada há meses atrás, classificando-a de «gracinha».

Admitindo que «gracinha» aqui assuma o significado de brincadeira ou brincadeirazinha, impõe-se esclarecer que sobre um assunto de tão alta importância como a sua afirmação, «na esteira» de F. Hayek, segundo a qual, «sem liberdade económica não poderá haver liberdade individual e política», não só não há brincadeira ou bricadeirazinha possível como pela seriedade da questão se justifica inclusive que mais voltemos a dizer.

A liberdade é princípio, Como princípio que é, não depende de nada e muito menos da liberdade económica poderia ou poderá alguma vez dependente quedar. A liberdade é o próprio espírito e, como tal, radica no pensamento.

Compreendemos a afirmação de Hayek mas importa não confundir nunca os distintos planos da realidade.

Miguel Bruno Duarte está muito certo quando se refere à Universidade como «a poderosa organização que nos informa e modela a todos», deduzindo, «por melhor que as pessoas sejam, queiram ser ou até aparentem ser, não podem escapar ao brutal e terrível condicionamento ideológico de que a Universidade é o agente primeiro por excelência»

É este, ou era este, o único ponto, ponto crucial, sem dúvida, mas único ponto de verdadeiro e sério desacordo entre ambos. Ou seja, para nós, o indivíduo tem sempre a capacidade de se libertar, pelo pensamento, de todo o mal, por maior que seja, imposto pela Universidade. Para o Miguel Bruno Duarte, tal não é, tendencialmente, possível.

Aceitar a incapacidade de o indivíduo se libertar, pelo pensamento, é admitir tudo o que há de mais contrário à Filosofia Portuguesa, se assim podemos dizer, um vez não poder deixar de significar também, e consequentemente, subsumir a individualidade ao condicionamento externo, destituindo o pensamento de todo o seu real valor operativo ou iniciático.

Não discordamos igualmente quando Miguel Bruno Duarte afirma não olhar a Universidade às pessoas (de um ponto de vista filosófico afigura-se-me mais aconselhável a expressão indivíduo, mas isso aqui é pouco relevante), nem, muito menos, criar as condições para as fazer pensar. Porém, já não acompanhamos integralmente por incapacidade de compreender o seu inteiro alcance, quando afirma «É um instrumento do mal a que até os melhores fecham os olhos para sobreviverem».

Que a Universidade seja ou se constitua, múltiplas vezes, como um instrumento do mal, não duvidamos, mas que o seja absolutamente, já colocamos as nossas reticências.

Como diria Álvaro Ribeiro, cuja leitura Miguel Bruno Duarte teve a amabilidade de nos sugerir: «Compete à história da filosofia mostrar que a antitética do mal ao bem, não já como valores ou predicados, mas como substâncias e entes, tem sido e continua a ser uma das doutrinas mais pervertedoras da inteligência humana e causadora dos conflitos sociais».

Se, como o própria Miguel Duarte Bruno reconhece, «a Universidade não é uma entidade metafísica a pairar algures, pois ela é sobretudo o que os homens dela fazem, cada um deles em particular e de forma bastante concreta», admitindo nós que, pelo pensamento, qualquer indivíduo se pode libertar, sem exclusão dos universitários, não podemos também deixar de admitir que, pelo menos algumas vezes, a Universidade não seja necessariamente instrumento do mal, tanto quanto os mesmos universitários não sejam, por essência, entes malignos.

Quanto «a quem fecha os olhos», não podemos deixar de concordar em abstracto, mas apenas isso, uma vez ser sempre, por definição, condenável fechar os olhos ao mal, por interesse ou benefício próprios. Mas apenas isso.

Para além disso, temos, naturalmente, simpatia e respeito por todas as muitas agruras vividas por Miguel Bruno Duarte no mundo da Universidade mas, com fraqueza, mais nos importa quanto pensa sobre o sofrimento passado do que a descrição do sofrimento propriamente dito.

Não temos grandes ilusões sobre mudar a Universidade, a actual Universidade, seja por dentro seja por fora. Por isso mesmo afirmamos também como única estratégia exigir, de um ponto de vista político, a liberdade de ensinar e a liberdade de aprender, extinguindo os actuais Ministérios da Educação e da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

Não é uma «grande estratégia», é uma «pequena estratégia», uma forma de, a pouco e pouco, ir tornando consciente o disparate da existência de um Ministério como o Ministério da Educação e de um Ministério como o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Uma «pequena estratégia», uma forma de ir tornando consciente que, a par da liberdade de ensino, ou talvez mais até do que a liberdade de ensino, importa a liberdade de aprender.

Ninguém irá dar nada de mão beijada? Evidentemente que não mas se a Universidade não é reformável por fora nem reformável por dentro, sempre se nos afigura uma «pequena estratégia» justificável e com sentido. Tão só isso, nada mais, ou tanto mais quanto, em boa verdade, o problema da Educação que estamos hoje a viver, ultrapassa em muito a própria Universidade, o que importa não deixar de ter igualmente em vista, mesmo quando se entenda que a Universidade, dominando como domina actualmente tudo e todos, de algum modo, de si faz depender a superação desse problema. Mas importa não tratar o problema da Educação como uma questão corporativa com a Universidade mas como um verdadeiro problema político, tal como é.

Talvez se justifique aqui recordar as palavras de Ferreira Deusdado já em finais do já longínquo século XIX: «A educação do Estado não pode fazer nem bons mestres nem bons sacerdotes. Pode todavia fazer bons soldados como outrora fez a dura e despótica república da Lacedemónia, e pode fazer legiões de livres-pensadores, educando-os no fanatismo anti-religioso, como está fazendo hodiernamente a tirânica e dissolvente república francesa. A educação religiosa, a educação moral e ainda o ensino geral intelectivo pertencem aos pais, é um direito sagrado do pátrio poder... Nós, povos latinos, arvoramos deploravelmente o Estado em panaceia, crendo-o atalaia da vida contra as hostilidades da morte. Em matéria ensinante, ao Estado pertence unicamente o ensino profissional ou técnico, como as escolas de guerra, marinha, etc., que não influem na íntima formação moral do homem.»

Ferreira Deusdado, uma figura igualmente completamente esquecida como, não por acaso, sucede a todos quantos representam a verdadeira tradição nacional, escrevia ainda num outro artigo, «Ensino Livre Perante o Estado», na Revista de Ensino e Educação: «A moral sem religião é uma quimera; ora, o ensino da moral, ministrado pelo Estado, não pode, segundo publicista modernos, ser religioso, porque então fere a liberdade de consciência dos ateus e dos que professam uma fé diferente da do Estado», interrogando, a determinado passo, «Qual o fim dum governo inteligente em matéria de instrução pública? É educar o povo para que por si próprio se vá habituando a esperar tudo da sua iniciativa e não do poder central».

Também podemos dizer que, mais de um século transcorrido, as mesmas palavras aplicam-se, continuam a aplicar-se, ipsis verbis, à questão da Educação. Afinal, os erros do passado persistem tanto quanto persistem os mesmos nefastos propósitos de escravização dos povos.

Em nome da quimérica, ateísta e criminosa igualdade, de uma mesma Educação para todos, para todos tornar e transformar em venerandos e obrigados servidores de um mesmo omnipotente Estado, sobre a Universidade, como afirmámos no primeiro comentário que originou a fúria emocional de Miguel Bruno Duarte, a mais terrível instituição de activa desnacionalização e militante anti-patriotismo da nossa actualidade, não temos quaisquer ilusões.

O que entendemos é que, parafraseando Jung quando se referia aos pais e às suas preocupações com a educação dos filhos, nem a Universidade poderá alguma vez fazer todo o bem que alguns imaginam nem todo mal que muitos de nós tememos. E mais do que isso, cremos absolutamente na séria, profunda e indestrutível capacidade de individuação dos portugueses, contra a qual nem mesmo a poderosa Universidade capacidade terá de contrariar.



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quinta-feira, 10 de junho de 2010

O Drama de Portugal (Conclusão)

Sarah Moon, Natal em Portugal, 1999


«A nossa ruína cultural, a nossa não lusitanidade íntima, esse é o mal que nos mina; todos os outros, por graves que sejam, podem passar, podem ter solução. Mas para aquilo que, continuado, é a morte mesma, não há solução».
As palavras são de Fernando Pessoa, o tão celebrado quão pouco lido como, menos ainda, verdadeiramente interpretado e compreendido poeta. Como o próprio também não deixava de referir, de acordo com a sabedoria popular, se «tem pouco uso o que não se presta a abuso», Pessoa tem sido o mais abusado dos poetas portugueses, todos se servindo das suas palavras a seu belo prazer e, não em poucos casos, quando não mesmo na sua maioria, revelando e manifestando tanto uma ignorância quanto uma tão indecorosa quanto arrepiante desonestidade intelectual.

Fernando Pessoa, como mais tarde soube Álvaro Ribeiro mostrar e demonstrar de forma luminosa e irrefutável, também compreendeu a verdadeira causa da decadência nacional. É certo que, hoje, enquanto Pessoa é a universalmente citada figura que todos conhecemos, Álvaro Ribeiro permanece não apenas como um obscuro mas acima de tudo proscrito autor pelo que poderemos designar, por facilidade de expressão e compreensão, como «cultura oficial».

Para se compreender exactamente o que pretendemos significar, bastará atender, nesse sentido, o que escreve, por exemplo, um literato como Eduardo Lourenço, tido como grande «pensador» de Portugal, no seu patético Labirinto da Saudade, onde, não dirá já sem aquele mínimo de compreensão interpretativa mas mesmo de honestidade intelectual, não só identifica Álvaro Ribeiro como um «salazarista» como, sem pejo, ínsinua ainda ter eventualmente beneficiado com tal atitude sob o anterior regime, como tal nunca sucedeu.

O que aqui importa, porém, não é a pequena e fraca figura de Eduardo Lourenço mas Álvaro Ribeiro que, desde 1943, pelo menos, data da publicação da sua obra, O Problema da Filosofia Portuguesa, não se cansou de chamar continuamente a atenção para a circunstância de não poder haver uma Filosofia Portuguesa sem uma Educação Portuguesa, não podendo assim, sem Filosofia Portuguesa, existir uma efectiva Política Portuguesa e, consequentemente, sem uma efectiva política Portuguesa, haver verdadeira afirmação de uma real Independência nacional.

Como é uma evidência e Álvaro Ribeiro não deixou de o salientar também, os erros de educação de uma geração pagam-se como problemas políticos na geração seguinte. E é exactamente essa a situação em que nos encontramos.

Como escreveu também Fernando Pessoa:

«Há três espécies e Portugal, dentro do mesmo Portugal; ou, se se preferir, há três espécies de português. Um começou com a nacionalidade: é o português típico, que forma o fundo da nação e o da sua expressão numérica, trabalhando obscura e modestamente em Portugal e por toda a parte de todas as partes do Mundo. Este português encontra-se, desde 1578, divorciado de todos os governos e abandonado por todos. Existe porque existe, e é por isso que a nação existe também. Outro é o português que não o é. Começou com a invasão mental estrangeira, que data, com verdade possível, do tempo do Marquês de Pombal. Esta invasão agravou-se com o Constitucionalismo, e tornou-se completa com a República. Este português (que é o que forma grande parte das classes médias superiores, certa parte do povo, e toda a gente das classes dirigentes) é o que governa o país. Está completamente divorciado do país que governa. É, por sua vontade, parisiense e moderno. Contra sua vontade, é estúpido.

Há um terceiro português, que começou a existir quando Portugal, por alturas d’El-Rei D. Dinis, começou, de Nação, a esboçar-se Império. Esse português fez as Descobertas, criou a civilização transoceânica moderna, e depois foi-se embora, foi-se embora em Alcácer-Quibir, mas deixou alguns parentes, que têm estado sempre, e continuam estando, à espera dele».

Ora, quando no texto anterior referimos haver uma causa para a falta de sentido do que Portugal é e, consequentemente, de qualquer sentido estratégico dos nossos mais recentes Presidentes da República, Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio a Cavaco Silva, era exactamente a esta mesma causa que nos referíamos, a sua falta de educação como portugueses, não surpreende muito assim, nada terem a dizer sobre Portugal porque, em boa verdade, ideia alguma têm de Portugal, do que Portugal seja e do seu Destino ou da sua Missão.

Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio a Cavaco Silva não representam uma geração pós 25 de Abril de 74, ou seja, pós-Revolução, mas uma geração educada em pleno Estado Novo. Ou seja, o designado problema da Educação é cousa antiga, muito antiga, muitíssimo antiga mesmo. Será hoje ainda mais grave? Com certeza, mas nem no tempo do Estado Novo estávamos muito melhor.

Na verdade, na verdade, como sugere Fernando Pessoa e Álvaro Ribeiro plenamente expõe e demonstra, a reforma pombalina da Universidade foi uma das maiores tragédias nacionais que alguma vez nos sucederam. Na verdade, na verdade, o Marquês Pombal ao reformar a Universidade, pretendendo, por um lado, terminar de vez com o ensino do «abominável Aristóteles» e, por outro, impor uma visão francesa e Iluminista do Mundo, divorciou radical e irremissivelmente todo o ensino de toda a mais genuína tradição nacional, conduzindo assim à esquizofrenia nacional em que estamos ainda.

De facto, a Universidade, sucessiva e cumulativamente Iluminista, Positivista, Marxista e agora Pragmatista, sempre com um mesmo fundo materialista socializante, é que tem vindo a ser responsável por formar, ao contrário do que se afirma, não as elites da nação, mas simplesmente as ditas «classes dirigentes» que nos desgovernam desde, pelo menos, há mais de dois séculos. Cortado o vínculo com a mais séria e profunda tradição, era esperado que assim sucede-se, tal como, aliás, o próprio Marquês pretendia.

Adriano Moreira, uma das poucas figuras políticas verdadeiramente relevantes dos últimos decénios, manifestava, em recente conferência a sua preocupação pelas consequências da adopção pela Universidade Portuguesa das regras impostas pelo chamado Tratado ou Declaração de Bolonha. Em síntese, deplorando um ensino cada vez mais utilitarista e pragmatista, cada vez mais afastado das humanidades e, muito em particular, da Filosofia, Adriano Moreira exortava a Universidade a resistir e a recusar as reformas propostas por esse mesmo Tratado ou a verdadeiramente designada Declaração de Bolonha.

A preocupação de Adriano Moreira afigura-se, sem dúvida nenhuma, compreensiva. Todavia, uma breve reflexão bastará para compreendermos como, um pouco mais de humanidades ou mesmo um pouco mais de Filosofia, também não irá, de per si, conduzir a lado nenhum senão, tal como até agora, não conduziu até onde nos encontramos.

Apela Adriano Moreira para mais Filosofia? Parece bem, mas que Filosofia? Racionalismo Francês? Idealismo Alemão? Pragmatismo Norte-Americano? Não sabemos. O que sabemos, com certeza, é que para a Filosofia Portuguesa é que não apela certamente.

Mais Bolonha ou menos Bolonha não importo muito, não importa nada, mesmo. O problema não reside aí.

Há anos atrás, convidado a leccionar um Curso de Filosofia na Universidade Lusófona, Orlando Vitorino elaborou o respectivo Curriculum do seu «Curso de Filosofia Portuguesa”, submetendo-o, como mandava a Lei à superior aprovação pelo Ministério da Educação e Ensino Superior (julgamos ser esta a designação à época do dito Ministério).

Avaliado por uma Comissão Científica cuja designação exacta não recordamos, presidida por Adriano Moreira, com o intuito de zelar pela boa conformidade dos cursos universitários, o «Curso de Filosofia Portuguesa», entre outras razões, foi recusado ou chumbado, por não referir, por exemplo, figuras tão «importantes» como, por exemplo, um António Gramsci (o curriculum do Curso pode ser lido na transcrição realizada aqui por Miguel Bruno no seu Liceu Aristotélico»).

Gramsci? O que tem de notável Gramsci? Nada, a não ser ter sido um marxista que se apercebeu e doutrinou a subversão da «sociedade burguesa» não via revolucionária mas pela Educação, a começar, naturalmente pela Universidade.

Não creio, não posso crer, ter tido Adriano Moreira directa responsabilidade nesta disparatada decisão de qualquer burocrata marxista e já devidamente estrangeirado. De qualquer forma, o que este episódio ilustra é mais Bolonha ou menos Bolonha não ter qualquer relevância enquanto não se acabar de vez com o actual Ministério da Educação mais o Ministério da Ciência e do Ensino Superior e não se libertar verdadeiramente a Educação, nada haverá ou valerá a pena fazer.

Consulte-se, por exemplo a página de Internet da FCT e veja-se a quem está entregue a decisão de financiamento dos respectivos Projectos de Investigação _ aos mais doutos estrangeiros das mais doutas universidades um pouco por todo o mundo, da Europa aos Estados Unidos e Canadá. Estranho mas real.

Veja-se, por exemplo, o recente livro sobre a História de Portugal de Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, coordenada pelo primeiro, um fastidioso relato de sucessivos factos, sem um mínimo de interpretação nem compreensão. Uma História onde tudo parece ser obra do acaso ou, quanto muito, fruto de circunstâncias fortuitas.

Uma História onde não há a mais leve ou mínima procura de compreensão da própria História, a mais leve ou mínima preocupação de compreensão de Portugal, onde todas as figuras, grandes ou pequenas, agindo e movendo-se, quais títeres, apenas por força do respectivo enquadramento, deterministicamente quase, sem pensamento, sem alma, sem liberdade, sem rasgo ou intenção superior ou mesmo transcendente. Tudo «vil tristeza».

Dois exemplos bastam para se compreender a que ponto baixa esta História.

Veja-se, a esse título, os Descobrimentos, onde se dá um relato mais menos exaustivo de partidas e chegadas, quase se estivéssemos no cais a anotar as partidas e as chegadas, as respectivas rotas seguidas e descobertas realizadas, sem mais.

Exageramos? Exageramos. Mas se formos procurar o que é dito, por hipótese, a propósito de uma figura como Cristóvão Colombo, tudo é despachado num parágrafo, dando como Genovês e como figura controversa. Brilhante.

De tudo quanto de notável, absolutamente notável, no tempo de D. João II, nada fica. Nem uma palavra sobre a «Política de Sigilo», nem uma palavra para a organização do primeiro Sistema de Informações, como hoje o que poderíamos designar, sem sombra de dúvida, um dos mais admiráveis entre os mais admiráveis, tão admirável que ainda hoje confunde historiadores incautos e imprevidentes, como palavra alguma sobre o trabalho científico e mesmo de Investigação e Desenvolvimento realizado, como hoje se diria, o que verdadeiramente permitiu não só a conquista de todo o Atlântico como, mais tarde, o domínio, sem par, do Índico.

Como um parágrafo chega também para «despachar» a questão do mapa Cor-de-Rosa sem uma palavra sobre Cecil Rhodes, essa sinistra figura a quem tudo quanto de pior nos sucedeu em África nesse momento se deve. Talvez devesse Rui Ramos ler, por exemplo, um livro de Fernando Pacheco de Amorim, «25 de Abril : Episódio do Projecto Global», se não nos falha a memória, para compreender essa tão megalómana quanto terrível e assustadora figura mas cujas consequências de muitos dos seus megalómanos feitos de então, ainda hoje perduram.

Bem podem Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva lerem a História de Portugal de Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalves Monteiro…

O nosso drama é grave, profundo e bem mais antigo que nós próprios. Infelizmente é assim e ainda muito havemos de pena até que, talvez, um dia, tudo possa começar a mudar. Como, apesar de tudo, cremos e esperamos.

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domingo, 6 de junho de 2010

O Drama de Portugal (II)




Mário Soares, o segundo ex-Presidente da República Portuguesa a proferir a Conferência no ciclo organizado pelo Instituto de Defesa Nacional, IDN, dedicado ao tema «Contributos para uma Estratégia Nacional», como vimos no texto anterior, foi eloquente no seu panegírico a Barak Obama. Em Janeiro de 2009, as preocupações de Mário Soares não se referiam tanto a Portugal como, acima de tudo, a Barak Obama e ao destino dos Estados Unidos da América: «Quando falo de uma crise sistémica quero dizer que só pode ser vencida tendo plena consciência disso e atacando as suas causas, que radicam na teoria neo-liberal que conduziu o mundo a «economias de casino», ditas virtuais. É isso que é preciso mudar. E vai ser feito pela nova Administração americana de Barak Obama. Não tenho dúvidas. A sua vitória foi, por várias razões, uma vitória histórica para a América e para o Mundo».


Sempre poderíamos dizer que, para um ateu, republicano e socialista, como Mário Soares, ele mesmo, gosta de se apresentar e caracterizar, a fé manifestada na preclara visão do futuro de Barak Obama e no seu extraordinário poder e correspondente capacidade de mudar o mundo e, quem sabe, qual psicopompo, transmutar mesmo a milenária natureza da dos homens, não deixa de ser comovente. Contudo, a seriedade do tema obriga-nos, mais do que a fazermos fácil ironia, a dizermos aquilo que de facto é: confrangedor.

Aliás, toda a Conferência se encontra redigida com um único fito: propor, com base na fé ideológica da «viragem histórica» a operar por Barak Obama em todo o Mundo, sermos a primeira das primeiras nações a procederem a uma laudatória aproximação aos novos Estados Unidos da América porque, como se deverá depreender das próprias palavras do ex-Presidente da República, por tal acto ficará Barak Obama eternamente agradecido, não deixando, por consequência, com toda a certeza, de nos cumular com as mais altas mercês e reconhecimento.

Vale a pena transcrever, na íntegra, o edificante parágrafo com que, praticamente, termina Mário Soares a sua Conferência: «Portugal, o país europeu mais próximo dos Estados Unidos _ com os quais, historicamente, sempre teve excelentes relações _ tem todo o interesse em pertencer aos países que primeiro compreendam a mudança em curso e cooperem lealmente com a América na viragem histórica que vai ocorrer. Com o nosso excelente relacionamento com o Brasil e o nosso histórico conhecimento do Atlântico norte e sul, não devemos perder essa janela de oportunidade que se nos abre. Adiantando-nos, se possível. Esta é outra linha estratégica em que não devemos hesitar em nos lançar.»

Como se compreende com facilidade, é exactamente este o tipo de discurso que se designa, vulgarmente, como pura verborreia.

Portugal é o país europeu mais próximo dos Estados Unidos? Em que sentido, geográfico ou do ponto de vista dos interesses estratégicos?

Mário Soares não o afirma mas podemos suspeitar que seja à proximidade geográfica que se refere uma vez que, de um ponto vista de interesses estratégicos, como é patente e a ninguém escapa, nem mesmo ao mais distraído dos mais distraídos cidadãos, entre as nações europeias, é, indiscutivelmente dos ingleses que os americanos mais aproximam. Ora, inferir de uma proximidade geográfica uma necessária e perfeita correlação de interesses estratégicos, é, simplesmente, ridículo.


Depois, «Portugal tem todo o interesse em pertencer aos países que primeiro compreendam a mudança em curso e cooperem lealmente com a América na viragem histórica que vai ocorrer»? Que interesse é que isso, i.e., ser uma das primeiras nações a compreenderem a mudança em curso e a cooperarem lealmente com a América de Barak Obama interessa realmente? Para além de não se saber se a viragem irá ser ou não histórica, como afirma, a não ser por um acto de fé, qual o verdadeiro interesse ou vantagens estratégicas decorrentes de sermos uma das primeiras nações a compreenderem a suposta viragem histórica? Não cooperamos, como cooperámos sempre, com ou sem barak Obama, com ou sem virgaem histórica, leamente com a América? Não é isso que importa? O que pretende Mário Soares insuar ou dizer com tais palavras?


Não se entende.

Como tampouco se entende a petética referência ao «nosso excelente relacionamento com o Brasil». Necessita o Brasil da nossa mediação para se relacionar com os Estados Unidos? Necessitarão os Estados Unidos da nossa mediação para se relacionarem com o Brasil?


Com um afrancesada cultura livresca, compreende-se que Mário Soares olhe ainda hoje para o Brasil como os franceses sempre olharam para o que designam como terceiro mundo, com um misto de condescendência e comiseração. Mas nem nós somos franceses nem o Brasil é o que Mário Soares imagina. No entanto, não deixa de ser triste, e mais do que triste, patético, como afirmámos, ver um ex-Presidente da República menorizar, incompreensivelmente uma nação que, além de ser em si mesma uma potência, é, de algum modo, o melhor que Portugal alguma vez realizou, que representa ou é concomitante, de algum modo, o próprio futuro de Portugal.

Quanto à valorização do nosso «histórico conhecimento do Atlântico» nem sabemos se vale a pena comentar. Se estivéssemos a falar do tempo dos Descobrimentos, do tempo da «política de sigilo», do tempo da descoberta do Regime dos Alísios e das correntes do Atlântico, ainda seria compreensível. Mas, hoje, que «conhecimento do Atlântico» possuímos nós que seja, afinal, de tão funda e crucial importância para os Estados Unidos? Está Mário Soares a brincar ou dispõe de informações que o comum dos mortais não dispõe?


Não se alcança.


Todavia, é com base nesse vazio que vem falar da «janela de oportunidade» que se abre. «Janela de oportunidade» que se abre? Para além da expressão patusca, que «janela de oportunidade» vê Mário Soares abrir-se, sobretudo quando tudo se afigura quedar-se suspenso de um ponto crucial como é o «adiantarmos», como se, «adiantarmo-nos», constituísse, de per si, um acto de altíssimo valor para os Estados Unidos? O que é que é isto? Podemos levar o discurso de Mário Soares a sério?


Infelizmente, afigura-se-nos que sim.

Como o prórpio faz questão de esclarecer, de tudo quanto temos vindo a falar, Mário Soares refere tão só como «outra linha estratégica em que não devemos hesitar em nos lançar». Uma entre outras. Quais outras?

Bom, para além dos lugares comuns habituais, como seja o Mar e a Comunidade de Países de Língua Portuguesa, a Língua, a massa cinzenta dos portugueses, tudo o que não estandoerrado em si mesmo, constituindo-se até como simples evidência para qualquer mente sã, nada mais sendo capaz Mário Soares de adiantar sobre tais temas, logo se compreende também como tudo isso mas não é senão leve marulhar inconsequente, sem interesse nem relevância.


E no idiossincrático estilo que o caracteriza, Mário Soares não deixa também de deplorar, uma vez mais, como todos deploram, a falta de auto-estima dos portugueses, chamando à colação, com uma falta de pudor e desonestidade intelectual, de acordo talvez com a ética republicana que tanto apregoa mas arrepiante para quem foi Presidente da República Portuguesa, o suposto dito de D. Carlos «no regresso das suas viagens a França», «Voltámos à piolheira», quando, hoje, como qualquer pessoa minimamente informada sabe, prova alguma há de D. Carlos algum vez ter proferido tal afirmação como não ser suposto, de acordo com o seu carácter, algum dia poder tê-lo feito.


Mas isso é o menos, respeitando apenas àquela insuperável veia à I República já característica também de Mário Soares, como se tivesse nascido ainda em pleno século XIX e não já em pleno século XX. O grave, o mais garve, mesmo muito mais grave, é vir defender devermos «pensar a Península Ibérica como um todo», não se coibindo de se referir a Espanha como «país irmão com interesses convergentes com os nossos».

Os interesses de Portugal e Espanha não são convergentes. Haverá interesses convergentes? Com certeza, mas, em abstracto, não se poderá considerar nunca, em tom de universalidade, os interesses de Portugal e Espanha como convergentes nem, menos ainda, pensar alguma vez a Península Ibérica como um todo, como se esses mesmos divergentes interesses de Portugal e Espanha, não fossem, em pontos cruciais, mesmo radicalmente opostos.

Surpreende muito a posição de Mário Soares? Não, não surpreende.


Infelizmente não surpreende. Como sempre, sobre Portugal, do que é Portugal e dos seus interesses, Mário Soares nada sabe, nada tem a dizer que verdadeiramente merça a pena ser ouvida.


Ramalho Eanes, o terceiro orador, deu início à sua conferência de forma promissora, citando Platão. Todavia, seduzido pelo pensamento sociológico de quem se afigura ser um dos seus principais mentores espirituais, o espanhol Rafael Alvira, logo o prólogo desce daquele plano a que poderia ter subido, ou seja, a uma reflexão sobre o Homem e o significado de Pátria, a uma mera excursão sobre o trabalho e a Sociedade Civil, a sua principal preocupação, muito louvável, por certo mas, no presente caso, absolutamente irrelevante.

O que importaria considerar seria o Conceito de Estratégia Nacional defendido por Ramalho Eanes e, nesse particular, tudo quanto afirma fica igualmente muito aquém do que seria de esperar.

Para Ramalho Eanes o Conceito de Estratégia nacional deverá definir-se a partir «da consideração conjugada, interactiva, de 3 variáveis:
• O Europeísmo, na sua versão comunitária, aberta, evolutiva e ainda de indefinido propósito final;
• Os centros de interesse de Portugal no resto do mundo, para cuja definição, como diz Adriano Moreira, se pode «recorrer a vários critérios: presença de comunidades portuguesas, (…)de filiados na cultura portuguesa; (…) o interesse pela língua derivado de necessidades económicas, científicas ou culturais; (…) interdependência política, militar, científica e tecnológica.»;
• A vinculação atlântica nacional (realidade e situações decorrentes da evolução geopolítica, quer dos Estados Unidos, quer da União Europeia.»

Não obstante, logo afirma também Ramalho Eanes: «Omitir não se pode quão difícil definir, com a necessária precisão, o nosso conceito estratégico nacional, dada a imprecisão definidora, política sobretudo, do destino da União Europeia e a «incerteza» do futuro da NATO _ no mínimo, do seu grande propósito e missão _, num quadro geopolítico de tão complexa configuração.»

Ora, para determinar um Conceito Estratégico, uma Grande Estratégia, como se poderia igualmente designar, o que importa compreender, acima de tudo e antes de mais, o que Portugal é e quais os seus interesses permanentes. Interesses permanentes esses que se encontram estreita e profundamente correlacionados, como é evidente, com a sua posição geo-estratégica que importa igualmente estudar e compreender, sem o que tudo o mais queda arbitrário e completamente vazio, para além, como é evidente, de múltiplos outros aspectos que agora não importa aqui considerar.

Ora, Ramalho Eanes não reflecte nem sobre o que Portugal é, nem verdadeiramente sobre os nossos interesses estratégicos permanentes nem sequer sobre a nossa posição geo-estratégica, limitando-se a manifestar algumas considerações de índole geral, vaga e abstracta, como seja a importância de «existência de uma Armada e Força Aérea que respondam à necessidades tradicionais ou às novas ameaças no espaço atlântico cuja responsabilidade nos cabe», não especificando a que espaço atlântico se refere, nem a que tipo de ameaças nem, muito menos, quais os meios que entende adequados a essa mesma defesa.

Refere-se Ramalho Eanes igualmente aos Países Africanos de Língua Portuguesa, afirmando a necessidade de «definição e desenvolvimento de políticas de cooperação com os PALOP capazes de perdurabilidade linguística e afectiva assegurar, em que alicerçar se pudesses políticas de cooperação mais ambiciosas e alargadas».

Ora, dos Países Africanos de Língua Portuguesa não faz parte o Brasil, parte sim da Comunidade de países de Língua Portuguesa, e se importância concede à nossa posição no Atlântico, se importância concede à nossa relação com o PALOP, não se compreende porque não há uma única referência sequer ao Brasil.

Demora-se ainda numa profusão de conselhos para a reforma do Estado, começando por determinar o propósito final de criação de um Estado «dinâmico, inteligente, estratega, selectivamente interventor, eficazmente executivo e antropologicamente liderante», logo se compreendendo porém a confusão estabelecida entre Estado e Governo, como é comum, e concedendo-lhe uma personificação algo excessiva, para dizer o mínimo, quando acrescenta esperar do Estado que seja, ou venha a ser, um Estado «forte, capaz de assumir de assumir um papel de liderança nas questões fundamentais, sendo capaz de questionar as suas responsabilidades como agente [principal] do bem comum _ e, em particular, a forma como desempenha os serviços que presta aos cidadãos», retomando aqui a expressão de Raul Galamba de Oliveira, o que pouco importa uma vez fazer suas as palavras do referido autor.

Para além disso, Ramalho Eanes preocupa-se e demora-se ainda pouco mais com alguns conselhos de ordem prática em termos de governação, das generalidades comuns no que respeita à Justiça e à Educação até à proposta de criação de um Ministério do Mar, bem como no que respeitará à necessidade, na sua perspectiva, de algumas alterações constitucionais, como seja a uma alteração das competências do presidente da República, nomeadamente, entre outros aspectos, de modo a acentuar a «interdependência democrática entre Presidente da República e Assembleia da República». Todavia, e uma vez mais, por mais meritórias que possam ser as suas sugestões e elucubrações sobre o estado, o Governo e a Constituição, no que aqui mais importava, ou seja, no que respeita à determinação de um Conceito de Estratégia nacional, pouco, senão mesmo nada, adianta.

Ou seja, encontrando-nos nós perante o discurso de três ex-Presidentes da República Portuguesa, por inerência, igualmente ex-Supremos Comandantes das Forças Armadas Portuguesas, o que constatamos é que nenhum dos três tem qualquer ideia de Portugal nem, consequentemente, qualquer Conceito Estratégico para Portugal.

Em relação à União Europeia só há encómios, como se a União Europeia fosse uma entidade una e não constituída por nações diversas com os seus correspondentes interesses estratégicos diversos, interesses esses, muitos dos quais, divergentes, opostos, conflituantes com os nossos próprios interesses. Todavia, não estudando esses interesses das restantes nações europeias, não havendo consciência dos nossos interesses, tudo se passa como se vivêssemos no melhor dos mundos possíveis, como se os interesses de todas as nações europeias fossem coincidentes, como se a própria União Europeia se encarregasse de zelar pelos nossos próprios interesses sempre que, em qualquer circunstância pudessem estar em causa.

Ó santa ingenuidade! Ó santa inconsciência! Ó santa irresponsabilidade!

E no entanto, já no final de 2008, início de 2009, conhecido era o famigerado Tratado de Lisboa e a perda da gestão de todos os seres vivos da coluna de água nossa ZEE a favor da Comissão Europeia (estamos não só a falar de pescas como de biotecnologia), mas nem um comentário dos digníssimos ex-Presidentes da República Portuguesa, eleitos, democraticamente, exactamente para zelarem pela coisa pública portuguesa.

E no entanto, já no final de 2008, início de 2009, não só conhecido era como há muito se encontrava em desenvolvimento, o trabalho da Estrutura de Missão Para a Extensão da Plataforma Continental e, não obstante, para além das vagas referências ao Mar, nem uma palavra sobre tão crucial quanto absolutamente decisivo projecto para Portugal.

Da importância ou sentido estratégico da nossa inserção na NATO, para além do reconhecimento do facto, nem uma palavra mais. E no entanto, num momento de profunda transformação, não importa avaliar a nossa posição na Organização, não importa compreendermos o valor que poderá ter ou não ter do Comando de Oeiras? Pois, nem uma palavra também, como palavra alguma sobre a Base das Lages, da nossa posição na EUROFOR e EUROMARFOR ou seja o que for.

Entretanto, porém, sabe-se o que se passou com o Comendo de Oeiras que passou a ter um Comandante francês após a reentrada de França na estrutura militar da Organização, em possível rotação com um comandante italiano, e nós, para cúmulo da vergonha, passamos inclusive a ter de partilhar o segundo comandante em rotação com os espanhóis. Comentário algum foi ouvido por parte de qualquer um dos três ex-Presidentes da República? Que nos tenha chegado ao conhecimento, nem um.

Todos referem, como é evidente, a importância da CPLP e do valor da Língua. Mas a que é que se referem verdadeiramente se estratégia alguma para a CPLP revelam, seja da Língua só têm uma noção prática, utilitária e economicista?
E poderíamos continuar mas todos terão compreendido já a situação, o drama a que chegámos: sermos governados por portugueses do ponto de vista jurídico mas estrangeiros do ponto de vista mental, do ponto de vista da formação intelectual.

E hoje, como sabemos, não estamos melhor. Visite-se, por exemplo, na Internet, a página oficial da Presidência da República e leia-se a Nota do actual Presidente, de sua graça, Aníbal Cavaco Silva:

«Esperança, confiança e sentido de futuro.

Há três ideias simples que devemos ter presentes quando falamos de Portugal, dos Portugueses e dos desafios que se nos colocam: esperança, confiança e sentido de futuro.


Esperança, porque conhecemos a forma como os Portugueses se revelam nas situações mais adversas. Por mais de uma vez, a sabedoria e a maturidade política do nosso Povo permitiram encontrar soluções para problemas aparentemente difíceis de superar.


Confiança, porque poderá ser a chave para retomarmos o ritmo de desenvolvimento económico indispensável ao progresso e bem-estar que tanto ambicionamos. Só com confiança poderemos intensificar a cooperação entre as instituições, os órgãos de soberania e o seu relacionamento com os cidadãos, de forma a concretizar o desígnio de um Portugal mais desenvolvido e mais coeso.


Sentido de futuro, porque importa que, em conjunto, possamos reinventar um rumo que nos oriente e mobilize, que nos prepare para os desafios das novas tecnologias, para a construção de uma Europa mais dinâmica e mais moderna.


Estou convicto de que o Presidente da República poderá dar um contributo inestimável para a concretização destas ideias.


Ao saudar-vos, através deste sítio, pretendo dar mais um sinal no sentido de envolvermos todos os Portugueses neste projecto ambicioso de construirmos um futuro melhor para Portugal.»

Julgamos estarmos todos esclarecidos.

Importa contudo ter noção que não é por acaso esta terrível cisão entre os portugueses e quem governa Portugal. A cisão tem, com certeza, uma causa, e essa causa é quanto importa agora apurar.


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