domingo, 6 de junho de 2010

O Drama de Portugal (II)




Mário Soares, o segundo ex-Presidente da República Portuguesa a proferir a Conferência no ciclo organizado pelo Instituto de Defesa Nacional, IDN, dedicado ao tema «Contributos para uma Estratégia Nacional», como vimos no texto anterior, foi eloquente no seu panegírico a Barak Obama. Em Janeiro de 2009, as preocupações de Mário Soares não se referiam tanto a Portugal como, acima de tudo, a Barak Obama e ao destino dos Estados Unidos da América: «Quando falo de uma crise sistémica quero dizer que só pode ser vencida tendo plena consciência disso e atacando as suas causas, que radicam na teoria neo-liberal que conduziu o mundo a «economias de casino», ditas virtuais. É isso que é preciso mudar. E vai ser feito pela nova Administração americana de Barak Obama. Não tenho dúvidas. A sua vitória foi, por várias razões, uma vitória histórica para a América e para o Mundo».


Sempre poderíamos dizer que, para um ateu, republicano e socialista, como Mário Soares, ele mesmo, gosta de se apresentar e caracterizar, a fé manifestada na preclara visão do futuro de Barak Obama e no seu extraordinário poder e correspondente capacidade de mudar o mundo e, quem sabe, qual psicopompo, transmutar mesmo a milenária natureza da dos homens, não deixa de ser comovente. Contudo, a seriedade do tema obriga-nos, mais do que a fazermos fácil ironia, a dizermos aquilo que de facto é: confrangedor.

Aliás, toda a Conferência se encontra redigida com um único fito: propor, com base na fé ideológica da «viragem histórica» a operar por Barak Obama em todo o Mundo, sermos a primeira das primeiras nações a procederem a uma laudatória aproximação aos novos Estados Unidos da América porque, como se deverá depreender das próprias palavras do ex-Presidente da República, por tal acto ficará Barak Obama eternamente agradecido, não deixando, por consequência, com toda a certeza, de nos cumular com as mais altas mercês e reconhecimento.

Vale a pena transcrever, na íntegra, o edificante parágrafo com que, praticamente, termina Mário Soares a sua Conferência: «Portugal, o país europeu mais próximo dos Estados Unidos _ com os quais, historicamente, sempre teve excelentes relações _ tem todo o interesse em pertencer aos países que primeiro compreendam a mudança em curso e cooperem lealmente com a América na viragem histórica que vai ocorrer. Com o nosso excelente relacionamento com o Brasil e o nosso histórico conhecimento do Atlântico norte e sul, não devemos perder essa janela de oportunidade que se nos abre. Adiantando-nos, se possível. Esta é outra linha estratégica em que não devemos hesitar em nos lançar.»

Como se compreende com facilidade, é exactamente este o tipo de discurso que se designa, vulgarmente, como pura verborreia.

Portugal é o país europeu mais próximo dos Estados Unidos? Em que sentido, geográfico ou do ponto de vista dos interesses estratégicos?

Mário Soares não o afirma mas podemos suspeitar que seja à proximidade geográfica que se refere uma vez que, de um ponto vista de interesses estratégicos, como é patente e a ninguém escapa, nem mesmo ao mais distraído dos mais distraídos cidadãos, entre as nações europeias, é, indiscutivelmente dos ingleses que os americanos mais aproximam. Ora, inferir de uma proximidade geográfica uma necessária e perfeita correlação de interesses estratégicos, é, simplesmente, ridículo.


Depois, «Portugal tem todo o interesse em pertencer aos países que primeiro compreendam a mudança em curso e cooperem lealmente com a América na viragem histórica que vai ocorrer»? Que interesse é que isso, i.e., ser uma das primeiras nações a compreenderem a mudança em curso e a cooperarem lealmente com a América de Barak Obama interessa realmente? Para além de não se saber se a viragem irá ser ou não histórica, como afirma, a não ser por um acto de fé, qual o verdadeiro interesse ou vantagens estratégicas decorrentes de sermos uma das primeiras nações a compreenderem a suposta viragem histórica? Não cooperamos, como cooperámos sempre, com ou sem barak Obama, com ou sem virgaem histórica, leamente com a América? Não é isso que importa? O que pretende Mário Soares insuar ou dizer com tais palavras?


Não se entende.

Como tampouco se entende a petética referência ao «nosso excelente relacionamento com o Brasil». Necessita o Brasil da nossa mediação para se relacionar com os Estados Unidos? Necessitarão os Estados Unidos da nossa mediação para se relacionarem com o Brasil?


Com um afrancesada cultura livresca, compreende-se que Mário Soares olhe ainda hoje para o Brasil como os franceses sempre olharam para o que designam como terceiro mundo, com um misto de condescendência e comiseração. Mas nem nós somos franceses nem o Brasil é o que Mário Soares imagina. No entanto, não deixa de ser triste, e mais do que triste, patético, como afirmámos, ver um ex-Presidente da República menorizar, incompreensivelmente uma nação que, além de ser em si mesma uma potência, é, de algum modo, o melhor que Portugal alguma vez realizou, que representa ou é concomitante, de algum modo, o próprio futuro de Portugal.

Quanto à valorização do nosso «histórico conhecimento do Atlântico» nem sabemos se vale a pena comentar. Se estivéssemos a falar do tempo dos Descobrimentos, do tempo da «política de sigilo», do tempo da descoberta do Regime dos Alísios e das correntes do Atlântico, ainda seria compreensível. Mas, hoje, que «conhecimento do Atlântico» possuímos nós que seja, afinal, de tão funda e crucial importância para os Estados Unidos? Está Mário Soares a brincar ou dispõe de informações que o comum dos mortais não dispõe?


Não se alcança.


Todavia, é com base nesse vazio que vem falar da «janela de oportunidade» que se abre. «Janela de oportunidade» que se abre? Para além da expressão patusca, que «janela de oportunidade» vê Mário Soares abrir-se, sobretudo quando tudo se afigura quedar-se suspenso de um ponto crucial como é o «adiantarmos», como se, «adiantarmo-nos», constituísse, de per si, um acto de altíssimo valor para os Estados Unidos? O que é que é isto? Podemos levar o discurso de Mário Soares a sério?


Infelizmente, afigura-se-nos que sim.

Como o prórpio faz questão de esclarecer, de tudo quanto temos vindo a falar, Mário Soares refere tão só como «outra linha estratégica em que não devemos hesitar em nos lançar». Uma entre outras. Quais outras?

Bom, para além dos lugares comuns habituais, como seja o Mar e a Comunidade de Países de Língua Portuguesa, a Língua, a massa cinzenta dos portugueses, tudo o que não estandoerrado em si mesmo, constituindo-se até como simples evidência para qualquer mente sã, nada mais sendo capaz Mário Soares de adiantar sobre tais temas, logo se compreende também como tudo isso mas não é senão leve marulhar inconsequente, sem interesse nem relevância.


E no idiossincrático estilo que o caracteriza, Mário Soares não deixa também de deplorar, uma vez mais, como todos deploram, a falta de auto-estima dos portugueses, chamando à colação, com uma falta de pudor e desonestidade intelectual, de acordo talvez com a ética republicana que tanto apregoa mas arrepiante para quem foi Presidente da República Portuguesa, o suposto dito de D. Carlos «no regresso das suas viagens a França», «Voltámos à piolheira», quando, hoje, como qualquer pessoa minimamente informada sabe, prova alguma há de D. Carlos algum vez ter proferido tal afirmação como não ser suposto, de acordo com o seu carácter, algum dia poder tê-lo feito.


Mas isso é o menos, respeitando apenas àquela insuperável veia à I República já característica também de Mário Soares, como se tivesse nascido ainda em pleno século XIX e não já em pleno século XX. O grave, o mais garve, mesmo muito mais grave, é vir defender devermos «pensar a Península Ibérica como um todo», não se coibindo de se referir a Espanha como «país irmão com interesses convergentes com os nossos».

Os interesses de Portugal e Espanha não são convergentes. Haverá interesses convergentes? Com certeza, mas, em abstracto, não se poderá considerar nunca, em tom de universalidade, os interesses de Portugal e Espanha como convergentes nem, menos ainda, pensar alguma vez a Península Ibérica como um todo, como se esses mesmos divergentes interesses de Portugal e Espanha, não fossem, em pontos cruciais, mesmo radicalmente opostos.

Surpreende muito a posição de Mário Soares? Não, não surpreende.


Infelizmente não surpreende. Como sempre, sobre Portugal, do que é Portugal e dos seus interesses, Mário Soares nada sabe, nada tem a dizer que verdadeiramente merça a pena ser ouvida.


Ramalho Eanes, o terceiro orador, deu início à sua conferência de forma promissora, citando Platão. Todavia, seduzido pelo pensamento sociológico de quem se afigura ser um dos seus principais mentores espirituais, o espanhol Rafael Alvira, logo o prólogo desce daquele plano a que poderia ter subido, ou seja, a uma reflexão sobre o Homem e o significado de Pátria, a uma mera excursão sobre o trabalho e a Sociedade Civil, a sua principal preocupação, muito louvável, por certo mas, no presente caso, absolutamente irrelevante.

O que importaria considerar seria o Conceito de Estratégia Nacional defendido por Ramalho Eanes e, nesse particular, tudo quanto afirma fica igualmente muito aquém do que seria de esperar.

Para Ramalho Eanes o Conceito de Estratégia nacional deverá definir-se a partir «da consideração conjugada, interactiva, de 3 variáveis:
• O Europeísmo, na sua versão comunitária, aberta, evolutiva e ainda de indefinido propósito final;
• Os centros de interesse de Portugal no resto do mundo, para cuja definição, como diz Adriano Moreira, se pode «recorrer a vários critérios: presença de comunidades portuguesas, (…)de filiados na cultura portuguesa; (…) o interesse pela língua derivado de necessidades económicas, científicas ou culturais; (…) interdependência política, militar, científica e tecnológica.»;
• A vinculação atlântica nacional (realidade e situações decorrentes da evolução geopolítica, quer dos Estados Unidos, quer da União Europeia.»

Não obstante, logo afirma também Ramalho Eanes: «Omitir não se pode quão difícil definir, com a necessária precisão, o nosso conceito estratégico nacional, dada a imprecisão definidora, política sobretudo, do destino da União Europeia e a «incerteza» do futuro da NATO _ no mínimo, do seu grande propósito e missão _, num quadro geopolítico de tão complexa configuração.»

Ora, para determinar um Conceito Estratégico, uma Grande Estratégia, como se poderia igualmente designar, o que importa compreender, acima de tudo e antes de mais, o que Portugal é e quais os seus interesses permanentes. Interesses permanentes esses que se encontram estreita e profundamente correlacionados, como é evidente, com a sua posição geo-estratégica que importa igualmente estudar e compreender, sem o que tudo o mais queda arbitrário e completamente vazio, para além, como é evidente, de múltiplos outros aspectos que agora não importa aqui considerar.

Ora, Ramalho Eanes não reflecte nem sobre o que Portugal é, nem verdadeiramente sobre os nossos interesses estratégicos permanentes nem sequer sobre a nossa posição geo-estratégica, limitando-se a manifestar algumas considerações de índole geral, vaga e abstracta, como seja a importância de «existência de uma Armada e Força Aérea que respondam à necessidades tradicionais ou às novas ameaças no espaço atlântico cuja responsabilidade nos cabe», não especificando a que espaço atlântico se refere, nem a que tipo de ameaças nem, muito menos, quais os meios que entende adequados a essa mesma defesa.

Refere-se Ramalho Eanes igualmente aos Países Africanos de Língua Portuguesa, afirmando a necessidade de «definição e desenvolvimento de políticas de cooperação com os PALOP capazes de perdurabilidade linguística e afectiva assegurar, em que alicerçar se pudesses políticas de cooperação mais ambiciosas e alargadas».

Ora, dos Países Africanos de Língua Portuguesa não faz parte o Brasil, parte sim da Comunidade de países de Língua Portuguesa, e se importância concede à nossa posição no Atlântico, se importância concede à nossa relação com o PALOP, não se compreende porque não há uma única referência sequer ao Brasil.

Demora-se ainda numa profusão de conselhos para a reforma do Estado, começando por determinar o propósito final de criação de um Estado «dinâmico, inteligente, estratega, selectivamente interventor, eficazmente executivo e antropologicamente liderante», logo se compreendendo porém a confusão estabelecida entre Estado e Governo, como é comum, e concedendo-lhe uma personificação algo excessiva, para dizer o mínimo, quando acrescenta esperar do Estado que seja, ou venha a ser, um Estado «forte, capaz de assumir de assumir um papel de liderança nas questões fundamentais, sendo capaz de questionar as suas responsabilidades como agente [principal] do bem comum _ e, em particular, a forma como desempenha os serviços que presta aos cidadãos», retomando aqui a expressão de Raul Galamba de Oliveira, o que pouco importa uma vez fazer suas as palavras do referido autor.

Para além disso, Ramalho Eanes preocupa-se e demora-se ainda pouco mais com alguns conselhos de ordem prática em termos de governação, das generalidades comuns no que respeita à Justiça e à Educação até à proposta de criação de um Ministério do Mar, bem como no que respeitará à necessidade, na sua perspectiva, de algumas alterações constitucionais, como seja a uma alteração das competências do presidente da República, nomeadamente, entre outros aspectos, de modo a acentuar a «interdependência democrática entre Presidente da República e Assembleia da República». Todavia, e uma vez mais, por mais meritórias que possam ser as suas sugestões e elucubrações sobre o estado, o Governo e a Constituição, no que aqui mais importava, ou seja, no que respeita à determinação de um Conceito de Estratégia nacional, pouco, senão mesmo nada, adianta.

Ou seja, encontrando-nos nós perante o discurso de três ex-Presidentes da República Portuguesa, por inerência, igualmente ex-Supremos Comandantes das Forças Armadas Portuguesas, o que constatamos é que nenhum dos três tem qualquer ideia de Portugal nem, consequentemente, qualquer Conceito Estratégico para Portugal.

Em relação à União Europeia só há encómios, como se a União Europeia fosse uma entidade una e não constituída por nações diversas com os seus correspondentes interesses estratégicos diversos, interesses esses, muitos dos quais, divergentes, opostos, conflituantes com os nossos próprios interesses. Todavia, não estudando esses interesses das restantes nações europeias, não havendo consciência dos nossos interesses, tudo se passa como se vivêssemos no melhor dos mundos possíveis, como se os interesses de todas as nações europeias fossem coincidentes, como se a própria União Europeia se encarregasse de zelar pelos nossos próprios interesses sempre que, em qualquer circunstância pudessem estar em causa.

Ó santa ingenuidade! Ó santa inconsciência! Ó santa irresponsabilidade!

E no entanto, já no final de 2008, início de 2009, conhecido era o famigerado Tratado de Lisboa e a perda da gestão de todos os seres vivos da coluna de água nossa ZEE a favor da Comissão Europeia (estamos não só a falar de pescas como de biotecnologia), mas nem um comentário dos digníssimos ex-Presidentes da República Portuguesa, eleitos, democraticamente, exactamente para zelarem pela coisa pública portuguesa.

E no entanto, já no final de 2008, início de 2009, não só conhecido era como há muito se encontrava em desenvolvimento, o trabalho da Estrutura de Missão Para a Extensão da Plataforma Continental e, não obstante, para além das vagas referências ao Mar, nem uma palavra sobre tão crucial quanto absolutamente decisivo projecto para Portugal.

Da importância ou sentido estratégico da nossa inserção na NATO, para além do reconhecimento do facto, nem uma palavra mais. E no entanto, num momento de profunda transformação, não importa avaliar a nossa posição na Organização, não importa compreendermos o valor que poderá ter ou não ter do Comando de Oeiras? Pois, nem uma palavra também, como palavra alguma sobre a Base das Lages, da nossa posição na EUROFOR e EUROMARFOR ou seja o que for.

Entretanto, porém, sabe-se o que se passou com o Comendo de Oeiras que passou a ter um Comandante francês após a reentrada de França na estrutura militar da Organização, em possível rotação com um comandante italiano, e nós, para cúmulo da vergonha, passamos inclusive a ter de partilhar o segundo comandante em rotação com os espanhóis. Comentário algum foi ouvido por parte de qualquer um dos três ex-Presidentes da República? Que nos tenha chegado ao conhecimento, nem um.

Todos referem, como é evidente, a importância da CPLP e do valor da Língua. Mas a que é que se referem verdadeiramente se estratégia alguma para a CPLP revelam, seja da Língua só têm uma noção prática, utilitária e economicista?
E poderíamos continuar mas todos terão compreendido já a situação, o drama a que chegámos: sermos governados por portugueses do ponto de vista jurídico mas estrangeiros do ponto de vista mental, do ponto de vista da formação intelectual.

E hoje, como sabemos, não estamos melhor. Visite-se, por exemplo, na Internet, a página oficial da Presidência da República e leia-se a Nota do actual Presidente, de sua graça, Aníbal Cavaco Silva:

«Esperança, confiança e sentido de futuro.

Há três ideias simples que devemos ter presentes quando falamos de Portugal, dos Portugueses e dos desafios que se nos colocam: esperança, confiança e sentido de futuro.


Esperança, porque conhecemos a forma como os Portugueses se revelam nas situações mais adversas. Por mais de uma vez, a sabedoria e a maturidade política do nosso Povo permitiram encontrar soluções para problemas aparentemente difíceis de superar.


Confiança, porque poderá ser a chave para retomarmos o ritmo de desenvolvimento económico indispensável ao progresso e bem-estar que tanto ambicionamos. Só com confiança poderemos intensificar a cooperação entre as instituições, os órgãos de soberania e o seu relacionamento com os cidadãos, de forma a concretizar o desígnio de um Portugal mais desenvolvido e mais coeso.


Sentido de futuro, porque importa que, em conjunto, possamos reinventar um rumo que nos oriente e mobilize, que nos prepare para os desafios das novas tecnologias, para a construção de uma Europa mais dinâmica e mais moderna.


Estou convicto de que o Presidente da República poderá dar um contributo inestimável para a concretização destas ideias.


Ao saudar-vos, através deste sítio, pretendo dar mais um sinal no sentido de envolvermos todos os Portugueses neste projecto ambicioso de construirmos um futuro melhor para Portugal.»

Julgamos estarmos todos esclarecidos.

Importa contudo ter noção que não é por acaso esta terrível cisão entre os portugueses e quem governa Portugal. A cisão tem, com certeza, uma causa, e essa causa é quanto importa agora apurar.

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