domingo, 30 de maio de 2010

O Drama de Portugal (I)



A crise de Portugal é, acima de tudo, a crise de uma Nação que deixou de saber conceber-se como Pátria, de uma Nação que se deixou subjugar aos interesses estrangeiros e hoje se comporta como uma Nação ocupada, Nação governada por políticos que não entendem o que Portugal é, ou é para ser, sem que tal os perturbe por um momento sequer.


Situação antiga, tão antiga e tão evidente que mais surpreende hoje não é já tanto a sua persistência mas, acima de tudo, o facto de haver ainda Portugal e, mais ainda, portugueses.

Entre o final de 2008 e início de 2009, sob o alto patrocínio do então Ministro da Defesa Nacional, Nuno Severiano Teixeira, o IDN, Instituto de Defesa Nacional, dirigido por António José Telo, promoveu, numa acção tão oportuna quanto pertinente, um ciclo de conferências subordinado ao tema, «Contributo para uma Estratégia de Defesa Nacional», com a participação de Jorge Sampaio, Mário Soares e Ramalho Eanes, os três antecessores, como todos devemos ter memória, do actual Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. Conferências essas mais tarde editadas pelo próprio IDN em obra subordinada ao mesmo título e que nos permite hoje melhor compreendermos, como iremos ver, o nosso profundo drama.

Jorge Sampaio, o primeiro dos conferencistas, logo afirma preferir a «imprudência» de falar da ambição que tinha para Portugal, projectando-a num horizonte temporal de 10 a 15 anos, dado entender ser tão constante a estratégia nacional, «ou a força das suas linhas de continuidade», que pouco mais teria a acrescentar senão repetir as mesmas grandes orientações.

E qual a «ambição» de Jorge Sampaio para Portugal num horizonte de 10 a 15 anos?

«Tal como aquando do 25 de Abril, a democracia portuguesa fez a aposta estratégica na Europa, teremos agora de ousar novas apostas, portadoras de futuro. Chegou a altura de inverter os papéis e de nos interrogarmos não tanto sobre o que a Europa pode fazer por nós, mas sobre o que nós podemos fazer por ela. Temos de apostar no reforço da solidariedade na comunidade ocidental, incluindo um esforço colectivo para garantir a estabilidade nos espaços periféricos cruciais para a nossa segurança. Temos de apostar no reforço da nossa posição internacional, através de uma diplomacia activa assente no uso intensivo dos instrumentos do soft power ¬ ¬_ a este respeito, não resisto aliás a dar o recentíssimo exemplo da proposta portuguesa de acolher alguns prisioneiros de Guantánamo, por que me parece uma excelente ilustração do que quero dizer. Temos de apostar no reforço da nossa credibilidade externa, aumentando a nossa capacidade de gerar consensos e de transmitir uma visão universalista do mundo, de saber usar de sentido estratégico e do conhecimento profundo que temos das nossas áreas tradicionais de influência _ penso especialmente na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e na Comunidade Ibero-Americana.»

Para além da tirada à John Kennedy, que fica sempre bem, a fé de Jorge Sampaio na Europa, de mais a mais, sendo um tão profundo, convicto e orgulhoso agnóstico, como sempre fez questão de publicitar, não deixa de comover.

À Europa, à União Europeia, tudo o que de melhor hoje somos o devemos, inclusive a defesa do nosso território e gentes: «com a multiplicação de ameaças difusas e o aumento dos fluxos de criminalidade internacional, é duvidoso que Portugal, com a sua situação geográfica particularmente exposta que detém, conseguisse assegurar por si só a segurança e a defesa do seu território e gentes».

A afirmação, como se compreende, sobre tudo para quem foi Presidente da República, Supremo Comandante das Forças Armadas, é grave. Se Jorge Sampaio o afirma, não temos que duvidar, mas talvez seja legítimo interrogarmo-nos:
1- Qual então o papel e o sentido da Aliança Atlântica, a NATO, e da nossa posição na mesma Aliança, sendo, ainda por cima, membros fundadores?
2- Deixo-o descansado, enquanto ex-Presidente da República Portuguesa, ex-Comandante Supremo das Forças Armadas, estarmos tão vulneráveis e dependentes da Europa, ou União Europeia, sobretudo no que respeita a uma das matérias onde menos entendimento e mais controvérsia e inoperância há nessa mesma Europa ou União Europeia?
3- Descansa igualmente Jorge Sampaio sobre a possibilidade de a Europa, ou União Europeia, decidir vir tomar conta do nosso Mar, o actual e o futuro, quando aprovada estiver a extensão da Plataforma Continental, tal como, em termos de gestão, decidiu já tomar conta da coluna de água da nossa Zona Económica Exclusiva, ZEE, com todas as implicações daí decorrentes?

À Europa devemos ainda, segundo Jorge Sampaio, a boa relação que hoje temos com os Países de Língua Portuguesa, ou seja, os antigos territórios portugueses de Além-Mar que engloba, eufemísticamente, nas «as nossas áreas tradicionais de influência»: «se não tivéssemos aderido à Comunidade e se a Europa não se tivesse constituído como um espaço unificado de integração regional e actor regulador da globalização, a autonomia de decisão política e a afirmação externa de Portugal, designadamente como parceiro incontornável da CPLP, seriam dramaticamente inferiores às de hoje».

Tem vantagem a integração de Portugal na actual União Europeia no respeita às nações da CPLP?

Aparentemente, numa primeira instância, figurar-se-á que sim. Todavia, se atendermos mais detidamente à questão, fácil é compreender também que, por um lado, essas mesmas nações não precisam de Portugal para nada no que respeita às suas possíveis relações diplomáticas e económicas com a União Europeia e, por outro, a importância da nossa relação, importância verdadeiramente estratégica, está muito para além da Europa e muito ainda além ainda do que do pequeno papel de intermediários que Jorge Sampaio parece querer atribuir-nos.

O caso de Cabo Verde é paradigmático. Dispondo hoje de Parceria Especial com a União Europeia, a quem mais aproveita directamente tal parceria é a Espanha que, através das Canárias, promove múltiplos projectos de cooperação com fundos europeus mas com a obrigação de todas as empresas contratadas para a sua execução serem de nacionalidade espanhola, percebendo-se, assim, de imediato, as vantagens que Portugal retira de pertencer à União Europeia nas suas relações com as nações da CPLP. Felizmente, porém, as nossas relações com as nações da CPLP, ao contrário das afirmações de Jorge Sampaio, estão e vão muito para além da União Europeia.

Finalmente, como seria de esperar, «com a internacionalização crescente da economia, as características sócio-económicas e com o nível de desenvolvimento que Portugal apresentava aquando aderiu à CEE, é duvidoso que tivéssemos conseguido encetar, com êxito, o ciclo de modernização do país e reforçar a coesão territorial, económica e social do país».

Se considerarmos e nos detivermos em exclusivo no momento imediatamente anterior à assinatura do Tratado de Adesão à CEE, dir-se-á que Jorge Sampaio não erra totalmente. De facto, nesse momento, a nossa situação estava longe de se poder considerar particularmente auspiciosa. Todavia, o que Jorge Sampaio são todos os desmandos realizados na sequência da dita revolução de 1974, a tomada do poder pelos comunistas, a loucura de um governo como o de Vasco Gonçalves e as nacionalizações de 11 de Março, entre múltiplos outros aspectos, que nos atrasou décadas e nos conduziu ao estado em que nos encontrávamos nesse momento e, de algum modo, nos encontramos ainda.

Aliás, basta ver que, ainda hoje, quando se fala dos monopólios subsistentes, sejam ainda do Estado ou em mãos particulares, como o caso mais evidente é o da EDP, o que se esquece é que, em grande medida, todos esses monopólios não foram senão criação do socialismo que nos subjuga e esmaga à décadas e não resultado de qualquer economia mais ou menos liberal, como sempre se faz crer.

Outras questões, porém. No que aqui importa considerar, pelo que ficou dito e transcrito do discurso de Jorge Sampaio, a Europa, seja como CEE ou a actual União Europeia, é tudo. Sobre a possibilidade de afirmação de uma visão verdadeiramente portuguesa, de uma estratégia verdadeiramente nacional, nem uma palavra, talvez com receio do «orgulhosamente sós» que tanto teme e tão atávica quanto irremissivelmente o assombra.

Seguros, na Europa, reconhecendo Jorge Sampaio a necessidade de mudarmos «porque o status quo não é sustentável aprazo», para além de nos devermos interrogar sobre o que podemos fazer pela Europa, como vimos pela transcrição feita no inicio do presente texto, outro aspecto é a «aposta» nos instrumentos de soft-power da diplomacia, seja lá isso o que for. Clausewitz dizia que a guerra é a continuação da diplomacia por outros meios, quererá Jorge Sampaio significar que a diplomacia é a continuação da guerra por outros meios, os meios ou instrumentos de soft-power?

Não sabemos. O que sabemos é que não há diplomacia que o valha sem plena consciência dos interesses nacionais e da correspondente estratégia nacional que os afirme e defenda.

Ora Jorge Sampaio, começando por referir entender ser tão constante a estratégia nacional, «ou a força das suas linhas de continuidade», que pouco mais teria a acrescentar senão repetir as mesmas grandes orientações, reconhece todavia a necessidade de mudarmos e termina com estas expressivas palavras: «Isto significa também que temos de mudar a imagem de Portugal e, mais do que isso, que temos de mudar Portugal. Precisamos de um sobressalto de patriotismo, de nos unirmos para definir e aplicar com sucesso uma estratégia nacional. Não será fácil, mas vale a pena tentar porque é maior a probabilidade de assim se conseguir um melhor resultado do que com a solução ou a saída que, se nada se fizer, acabará por se impor por força das circunstâncias. Por mim, tenho a certeza _ se quisermos conseguimos».

Afinal sempre parece ser necessário «unirmo-nos para definir e aplicar com sucesso uma estratégia nacional». Mas não era exactamente esse o contributo pedido? E que teve Jorge Sampaio a dizer sobre o assunto, para além da Europa, dos sempiternos louvores a uma suposta ética republicana» que ninguém sabe o que seja, à Carta Universal dos Direitos do Homem e múltiplas outras afirmações grandiloquentes de intenções, como «desenvolver uma cultura moderna de risco, conhecimento, inovação e reforma de métodos e de mentalidades»? Muito pouco, ou mesmo nada.

Afinal, o que estava garantido no início, está em causa. Afinal, necessário sendo «unirmo-nos para definir e aplicar com sucesso uma estratégia nacional», mesmo antes de mais, sabe ser necessário mudar Portugal. O que isso significa, porém, Jorge Sampaio também não esclarece. Nem o que entende por Portugal nem por que tal mudança se exige ou exige. Ficamos a saber apenas que entende necessário mudar Portugal, para além da sua imagem, que também não sabemos qual seja ou entende ser.

E tudo isso porquê? Porque os resultados, em termos de probabilidade, serão superiores a nada fazer. Não há razão superior, apenas esta, prática e comezinha _ e, ainda por cima, incerta. Mais uma «aposta», talvez, mas tão somente isso, esperando, com fé, nos bons auspícios da lei das probabilidades.

Conclusão admirável.

Para um ex-Presidente da República, não está mal.

(em próximo texto retomaremos os discursos de Mário Soares e de Ramalho Eanes)

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