segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Dos Cíclicos Achaques de Iberismo

Valter Vinagre, Tarbes, 1993


O dito Iberismo é uma das mais antigas e persistentes doenças nacionais. Doença congénita, presente desde a mais recuada e primeva génese de Portugal, tem sido uma constante dramática ao longo de toda a sua História, manifestando-se ora em forma de ilusória exaltação pátria, ora em forma de depressiva desilusão, conduzindo mesmo, neste último caso, até momentos de muito baixa e rasteira traição nacional.


Momento crucial de determinação do moderno conceito de Iberismo, se assim podemos dizer, é, naturalmente, a data de 1580, ou seja, o momento em que se dá a reunião da Coroa Portuguesa e Coroa Espanhola sob a uma mesma cabeça, a de Felipe II de Espanha, dito igualmente I de Portugal, momento a partir do qual o Iberismo passou também a não poder deixar de ser entendido senão numa exclusiva acepção negativa uma vez tornar-se concomitantemente impossível não significar a inexorável submissão dos interesses de Portugal ao Império de Castela, modernamente designado, tão pomposa quanto abusivamente, Espanha.

Como todos temos obrigação de saber mas por vezes tendemos a esquecer, até ao casamento de Isabel de Castela e Fernando de Aragão, os futuros Reis Católicos, em 1469, a Hispânia era composta por vários Reinos, entre os quais se contava, como é óbvio, também Portugal.

Ora, no xadrez político da época, ou melhor dito, desde a inicial declaração de independência até 1580, Portugal não deixou de acalentar também o desejo e a ilusão de domínio de toda a Ibéria, começando, naturalmente, pelo domínio de Castela, não deixando também de agir consequentemente, fosse, por vezes, através das armas, fosse, sobretudo, através do estabelecimento de alianças baseadas nos tradicionais casamentos políticos cruzados.

Em simultâneo, porém, desde início, muitos fidalgos tidos já como portugueses, se manifestaram partidários de Leão e Castela, pugnando tenaz e persistentemente por uma integração, ou reintegração, de Portugal num todo que não admitiam separado, fosse por interesse pessoal, político ou fosse qual fosse.

A sucessão de situações dramáticas senão mesmo trágicas a que conduziu tal divisão entre portugueses, são bem conhecidas. O episódio do assassinato de Inês de Castro por exclusivas razões políticas, é bem conhecido, como não menos conhecida é a designada crise de 1383-1385 que levaria ao trono D. João I, agora rememorada pela justa canonização de Nuno Álvares Pereira _ na verdade, um dos mais notáveis e admiráveis portugueses de sempre, o nosso Santo Condestável, vivendo, como se sabe, num período particularmente difícil também pela divisão que, uma vez mais, se instalou nas hostes nacionais e que levou Fernão Lopes a dizer que «entre portugueses, traidores algumas vezes houve».

Longe de se pretender qualquer enumeração mais ou menos exaustiva das sucessivas situações ou episódios, alguns momentos importa não deixar de ter permanentemente em mente, como sejam as ilusões de um Afonso V, ingloriamente terminadas em Toro, as veleidades de um D. Manuel I, bem como a eventual ilusão de D. João II ao casar o seu filho Afonso de Portugal com Isabel, filha dos Reis Católicos. Sonho ou ilusão logo desfeita com a prematura morte do mesmo D. Afonso, futuro herdeiro dos Reinos de Portugal, Castela e Aragão, numa misteriosa queda de cavalo em que, para sempre, restou a suspeita de se esconder sob essa mesma capa de mistério a mão longa dos interesses dos mesmos Reis Católicos. Nada ficou alguma vez provado, é certo, mas, amargurado, incapaz de legitimar o seu filho D. Jorge, D. João II, como se sabe, acabou por morrer poucos anos depois, também sob suspeita de envenenamento por parte daquela fidalguia dita portuguesa que sempre o odiou, recaindo o trono sobre D. Manuel, o Venturoso, que veio a casar não apenas com uma mas com três princesas espanholas, enchendo e abrindo, por consequência, a nossa Corte a «nuestros hermanos» e respectivos interesses.

Fosse como fosse, o ponto a que se chegou nas vésperas de 1580 foi, sem dúvida alguma, um dos mais baixos de toda a nossa História, só comparável, em parte, ao que hoje, de algum modo, voltamos, não sem esperada tristeza, a assistir.

A frase atribuída a Filipe II, segundo a qual, no que respeita ao Reino de Portugal, o herdara, o comprara e, se dúvidas houvera, o conquistara, retrata fielmente quanto se passou.

Na verdade, filho de Carlos V e Isabel de Portugal, filha do já referido Venturoso D. Manuel, Filipe II herdou, legitimamente, o trono de Portugal. Verdade é que, sempre apoiado na determinante ajuda de um Cristóvão de Moura, havia, avisada e precavidamente, comprado já os favores da maioria da nobreza portuguesa, i.e., da que restava depois do desastre de Alcácer Quibir, incluindo, segundo se diz, num primeiro momento, o infeliz D. António Prior do Crato que, mais tarde se redimiu ou proclamar-se Rei de Portugal, que o foi por 33 dias, e impôr um simulacro de resistência às forças do Duque de Alba quando essa resistência pouco além de um simples simulacro poderia ir já.

Como se sabe, a responsabilidade de tal situação ficou dever-se também, em grande medida, ao patético Cardeal D. Henrique que, tão incapaz já de gerar filhos na idade avançada em que ia já, quanto de designar um sucessor, fosse a Duquesa de Bragança, fosse o próprio D. António do Crato, o neto de D. Manuel I que D. Henrique desprezava por ser filho de D. Luís e da Pelicana, como era conhecida a sua mãe, Violante Gomes, considerada uma das mulheres mais bonitas da sua época mas de baixa posição social e suspeita, segundo as más-línguas, de ascendência judaica, acabou por reforçar, com a sua atitude, as pretensões de Filipe II, com o infausto desenlace que todos conhecemos.

Após 1640, o Iberismo esfriou naturalmente, como seria de esperar, regressando apenas em força nos finais do séc. XIX e início do séc. XX, para não mais desaparecer por completo, tal como a todos nós é dado hoje ver e assistir.

Muito por instigação de alguns intelectuais espanhóis, alguns verdadeiramente notáveis, a ideia de um renovado Iberismo regressou em força no referido período, encontrando do lado de cá também os seus epígonos, entre os quais nunca deixarão de sobressair figuras como as de um Antero de Quental ou de um Oliveira Martins. Todavia, mais grave, muito mais grave, pelas atitudes e modo insidioso como procederam, não se pode esquecer nunca os Republicanos, com Magalhães Lima e a sua obra, «A Federação Ibérica», à cabeça, a quem a subjugação de Portugal a Espanha nada incomodava desde que removida fosse a realeza portuguesa do trono.

Como já aqui referido em distinto texto, podemos compreender porque interrogava Galdós «para que servia Portugal», ou as posições de historiadores notáveis como Salvador de Madariaga, Sáchez Albornoz, Américo de Castro, Menendez Pelayo ou mesmo de um político tido como amigo de Portugal, Manuel Fraga Iribarne, entre muitos outros, como Miguel de Unamuno que, não obstante a sua genuína admiração pela nossa Pátria e por muitos dos nossos mais eminentes escritores, como Pascoaes, quando tentava explicar a Fernando Pessoa a grande vantagem de passar a dispor de um mercado muito mais alargado para as suas obras, ouviu deste,como bom português, retorqui-lhe que, se fora isso que mais importasse, preferia então continuar a escrever em inglês, contando com um mercado ainda mais alargado.
O que entretanto não podemos compreender é a atitude de tantas figuras ditas portuguesas perante os dislates proferidos e escritos do outro lado da fronteira. E não nos referimos àquele escritor russo naturalizado espanhol e cujos livros se encontram tão mal traduzidos para português, vencedor, segundo consta, como bom escritor comunista ortodoxo, de um Prémio Nobel, que não conta. Referimo-nos a figuras como Eduardo Lourenço que, apesar de toda a incompreensão manifestada ao longo a sua vida por Portugal, já tinha idade para não embarcar em serôdios Iberismos e, acima de tudo e de todos, os nossos políticos que deveriam ter como primeira missão saberem defender-nos desses mesmo dislates.

Vem tudo isto a propósito de, uma vez mais, nos jornais de Quarta-feira passada, o Iberismo ter voltado a atacar como, todo o momento, sempre se espera que o faça.

De dois modos o fez.

Numa primeira instância, pela divulgação, aparentemente inócua, de um estudo da Universidade de Salamanca ao abrigo de um suposto Barómetro de Opinião Luso-Espanhol, ou Hispano-Luso, não chegamos a perceber bem real designação, tal como reportado nos jornais Público e Diário Económico.

Em título, surge no Diário Económico, «Metade dos portugueses rejeita uma união ibérica», tendo em subtítulo, «A hipótese de uma federação ibérica desagrada a mais de metade dos portugueses, mas 40% dos espanhóis apoiaria um governo comum».

Em título, surge no Público, «Quase 40 por cento dos portugueses a favor de uma federação ibérica de Estados», continuando, não em subtítulo mas na chamada «lead», «E um terço dos espanhóis defende o mesmo, revela o Barómetro de Opinião Hispano-Luso 2009, da Universidade de Salamanca».

O contraste do modo de apresentar a mesma notícia não deixa também de ser significativo. Natália Faria, a entusiasta jornalista do jornal Público, quanto mais lhe importa assinalar é o crescente aumento de outros portugueses igualmente entusiastas por uma putativa Federação Ibérica. «Quando Saramago apontou a inevitabilidade de uma federação ibérica entre Portugal e Espanha, meio país reagiu escandalizado. E o próprio Presidente da república, correu a classificar a ideia como «absurda». Aparentemente não o é – pelo menos para 39,9 por cento dos portugueses e para 30,3 dos espanhóis ouvidos no Barómetro de Opinião Hispano-Luso 2009».

A entusiasta jornalista do Público, para além de acentuar adiante terem sido as respostas de ambos os lados da fronteira maioritariamente favoráveis a uma União Ibérica, presta-nos um bom serviço ao ter tido a pressurosa maçada de ir entrevistar um tal Salvador Santiuste, segundo se afigura, o responsável pelo dito estudo, de modo a permitir ficarmos a saber que, «tomado o pulso à situação», «a ideia é que o barómetro possa repetir-se nos próximos anos, para permitir uma leitura da evolução da evolução das relações entre Espanha e Portugal». Percebe-se, percebe-se bem o porquê e para quê da necessidade de tal repetição e continuidade.

Catarina Duarte, a jornalista do Diário Económico, mais subtil, e talvez menos entusiasta, conduz, por sua vez, a notícia pela negativa: «A ideia de regressar ao tempo dos Filipes desagrada aos portugueses mas nem tanto aos espanhóis. Uma coisa é certa: a possibilidade de uma Federação ibérica dos dois países não é consensual nos dois lados da fronteira. Uma eventual união dos dois países deixa 30% dos espanhóis indiferentes, enquanto no nosso país as opiniões são mais dispersas: 13,3% dos portugueses mostram-se muito de acordo, 17,7% indiferentes, 34,1% discordam e 18,5% discordam por completo».

O mais do Barómetro de Opinião Luso-Espanhol, como também designado por Catarina Duarte, é irrelevante. Que pode interessar saber que percentagem de portugueses é que reconhece Zapatero como o Primeiro-Ministro de Espanha ou a percentagem de espanhóis que reconhecem José Sócrates como Primeiro-Ministro de Portugal? Ou, ainda, que importa saber que os portugueses mais conhecidos em terras de D. Juan Carlos de Borbon, sejam Luís Figo e Cristiano Ronaldo, além de um tal Saramago que surge por engano como português, sejam as figuras mais famosas do lado de lá da fronteira?

O que importa e é relevante, é o modo insidioso como, através destes barómetros, sejam Hispano-Lusos ou Luso-Espanhóis, se vai instigando a ideia de uma possível Federação Ibérica constituir-se como algo tão natural quanto perfeitamente aceite por um crescente número de portugueses tidos, ou cridos, evidentemente, como dos mais esclarecidos, arejados e cosmopolitas de todos.

Entretanto, por coincidência ou não, vá-se lá saber, em segunda instância, ambos os jornais relatam e destacam, na mesma edição, as notáveis declarações de Ricardo Salgado, Presidente do Banco Espírito Santo, em que afirma ser favorável à rápida construção do TGV como forma de «acelerar a integração ibérica».

As declarações não surpreendem muito. Por um lado, Ricardo Salgado sempre se distinguiu como financeiro, i.e., como alguém que é suposto saber fazer bem contas, não como português, i.e., como alguém que haja sabido pensar seja o que for de relevante sobre Portugal. Por outro, conhecidas e públicas são também as estreitas relações de intimidade entre a família Espírito Santo e a família Real Espanhola, desde os tempos de exílio de Afonso XIII no Estoril.

O que é relevante e se encontra subjacente nas afirmações de Ricardo Salgado, é o perigo a que sempre nos expomos quando, aos aspectos económicos, se concede primazia sobre tudo o mais.

Na verdade, uma das vantagens sempre referidas para se conceder uma primordial importância à economia sobre tudo o mais, respeita exactamente às virtudes sempre apontadas ao comércio como inegável factor de pacífica aproximação entre os povos, passível de conduzir não apenas a uma, quase se diria natural, imposição da democracia como também a uma kantiana «paz perpétua» entre as nações.

Por outras palavras, quando não se atende suficientemente e se toma como primordial a clássica afirmação de Hayek segundo a qual «onde não há liberdade económica, não pode haver liberdade individual e política», o perigo está em sermos subtilmente subjugados por um puro «liberalismo económico» que, inexoravelmente, nos haverá de conduzir a um novo internacionalismo onde as nações não deixarão apenas de fazer qualquer sentido mas serão, inclusive, sempre entendidas fautoras de dissensão e desordem a anular pelo seu consequente desaparecimento.

Quem se der ao trabalho de ler L. Von Mises, o mestre de Hayek, é isso mesmo que irá encontrar.

De um ponto de vista estritamente económico, a Federação Ibérica até poderia fazer sentido, como sempre sucedeu. A independência de Portugal não se deve, porém, a quaisquer razões de ordem económica. Pelo contrário, a independência de Portugal é tão mais surpreendente e admirável quanto, por estritas razões económicas, não só não faria qualquer sentido como sempre se constituiu como um erro ou até mesmo um disparate. Todavia, por razões de ordem mais elevada, a independência de Portugal não apenas se afirmou como se mantém, contra todas as razões económicas, não sem dificuldades e momentos particularmente difíceis, é certo, há quase nove séculos. Quando as razões económicas prevaleceram sobre as demais, o que sucedeu foi 1383-1385, foi 1580, foi a Comunidade Europeia, poderá ser uma eventual e futura Federação Ibérica que esperamos nunca ver.

Os insidiosos ataques dos Iberistas não surpreendem nem preocupam como tampouco surpreendem ou preocupam afirmações como as de um Ricardo Salgado. O que verdadeiramente surpreende e preocupa é olharmos hoje em volta e vermo-nos tão impreparados para estes renovados ataques e afirmações quando sabemos como a Universidade, funcionando tendencialmente como o mais terrível factor de desnacionalização e activo anti-patriotismo alguma vez visto na nossa História, mina por extensão todo o dito Sistema Nacional de Ensino, amputando sucessivas gerações de real capacidade de autonomia intelectual, efectivo sentido de independência e de um verdadeiro amor à transcendente liberdade. Como escrevia Álvaro Ribeiro, sem filosofia portuguesa não há, não pode haver, verdadeiro ensino nacional; sem verdadeiro ensino nacional, não há, não pode haver, verdadeira política nacional; sem verdadeira política nacional, não há, não pode haver, verdadeira independência nacional. Ou seja, a triste situação em que nos encontramos hoje, vivendo numa espécie de nação ocupada, à mercê de quase tudo e todos mas muito satisfeitinhos porque, de um ponto de vista estritamente económico, e não há muitos anos, como nos dias pós-revolucionários de 74, já tudo esteve bem pior do que está.


1 comentário:

Anónimo disse...

José Antonio Martín Pallín.....¿Iberista?