José Manuel Rodrigues
«Não rir, não chorar, tudo tentar compreender»
Bento Espinosa
Quando Miguel Bruno Duarte refere o suposto carácter sentimentalista do nosso comentário respeitante ao seu comentário à conclusão do conjunto de textos a que se deu por título «O Drama de Portugal», não pudemos evitar um suave sorriso.
O sentimentalismo é uma característica em que os portugueses têm uma tendência em cair dado constituírem-se como um povo com um carácter acentuadamente sentimental, como não deixa de ser notado por todos quantos se têm dedicado ao estudo das características do povo português.
É pelo sentimento que nos temos distinguido, entre outros aspectos, dos povos do norte da Europa onde a ausência de tal características, ou seu defeito, conduziu a um frio e abstracto, racionalismo, incapaz, no limite, de uma verdadeira compreensão da vida e da correspondente transcendência.
Nós, portugueses, não opomos pensamento e sentimento como tendencialmente sucede com nórdicos. Para nós, portugueses, o pensamento engloba sempre, como não poderia deixar nunca de englobar, o sentimento, tal se encontra luminosamente exposto por José Marinho na sua introdução à Teoria do Ser e da Verdade, «desde a sensação à ideia todo o pensamento por mais modesto liberta».
Quando, porém, essa mesma característica se dá em excesso, então sim, cai-se no sentimentalismo, correspondendo também, tendencialmente, a uma desordenação do pensamento por uma tão dominante quanto exacerbada e avassaladora emoção.
Não se nos afigurando termos caído em tal excesso e sabendo como, por vezes quanto mais detestamos no próximo é quanto não queremos reconhecer em nós próprios, sorrimos.
Tudo quanto o comentário ao primeiro comentário de Miguel Bruno Duarte pretendia acentuar era tão só a tão portuguesa virtude da esperança. Como distinguia e acentuava Álvaro Ribeiro, os portugueses, ao contrário de franceses, por exemplo, exactamente decorrente dessa mesma intrínseca virtude da esperança, não são um povo de dúvida mas de crença.
Quanto se nos afigurou inadequado o comentário de Miguel Bruno Duarte foi ter subsumido todo o universo dos membros da comunidade universitária numa espécie de mesma classe, um pouco, como referimos, como Marx fizera em relação às ditas «classes sociais».
Tal comentário, ou reparo, como se verifica pelos comentários seguintes, enfureceu a tal ponto Miguel Bruno Duarte que, possuído por uma avassaladora emoção, logo passou a subordinar todo o pensamento ao sentimento, perdendo-se, por completo, da questão essencial em debate.
O ponto essencial em debate era tão somente este: não obstante tudo quanto a Universidade, como instituição, personifica de errado, devemos sobretudo atender à individualidade de cada um dos seus membros porque, na nossa perspectiva, não é correcto nem legítimo estigmatizar cada um dos seus membros como se nada mais fossem senão a reprodução fiel e exacta de todos esses mesmos erros que verificamos serem personificados pela Universidade como instituição.
Como portugueses, e até mesmo de um ponto de vista filosófico, entendemos constituir sempre um erro inaceitável a condenação de seja quem for senão pela afirmação positiva ou negativa da sua individualidade. Condenar seja quem for apenas por se encontrar, de algum modo, ligado a uma instituição como a Universidade, afigura-se-nos um erro inaceitável.
Miguel Bruno Duarte bem podia e pode argumentar que a própria selecção verificada na Universidade sempre conduz a uma escolha que, no limite, irmana todos os escolhidos numa mesma matriz de pensamento e procedimento.
Ora, não obstante a tendencial veracidade de tal argumento, ainda assim não podemos, como portugueses e de ponto de vista filosófico, deixar de sobrevalorizar a individualidade de cada um em relação a um abstracto colectivo que poderão ou não verdadeiramente representar.
E mais do que isso, a Universidade não se resume às Faculdades de Letras e aos departamentos de Filosofia. A Universidade é mais, muito mais do que isso, a Universidade não é sequer a geração que nos precede nem sequer já a nossa geração, das quais pouco ou nada há já a esperar, mas as novas gerações que, educadas sob as condições em que todos sabemos terem sido formadas, ainda assim, mantêm, de um ponto de vista individual, um genuíno amor a Portugal e à verdade que não podemos, de forma alguma, ignorar nem, muito menos, repudiar, devendo até termos a obrigação de sabermos devidamente valorizar. É para essas gerações, novas gerações, gerações sacrificadas, sufocadas, dilaceradas por anos e anos de desnorte na Educação, que importa escrever, intervir, como vulgarmente se diz, não em nosso nome mas em nome de Portugal.
A ironia de tudo isto é que tudo isto que aqui se passa, ou seja, esta troca de comentários a resvalarem, de súbito, para a pura emoção, personalizando tudo, não deixa também de ser sina bem portuguesa, contrapartida negativa do tão característico sentimento que, exacerbado, sempre conduz à subjugação do pensamento ao sentimento, logo impedindo, por consequência, um verdadeiro diálogo, i.e., a busca da verdade através do logos.
E suprema ironia de tudo isto é tudo isto suceder quando um dos interlocutores logo afirma os típicos tiques de tudo quanto a Universidade tem de pior, tal como sucede, infelizmente, com o Miguel Bruno Duarte.
Antes de mais, o tão típico gosto universitário de sobrevalorizar a forma sobre o conteúdo, procurando sempre esmagar o interlocutor com uma suposta erudição superior e uma hipotética exigência de rigor científico completamente vazios ou, pelo menos, absolutamente irrelevantes para o diálogo em questão.
Chocado, muito chocado, pelo paralelismo entre o modo como entendemos que classificava os universitários tal como Marx classificava os indivíduos em «classes sociais», Miguel Bruno Duarte pretendendo corrigir, diz exactamente o mesmo numa expressão de suporto maior rigor «lógico» mas que, em boa verdade nada acrescenta ou corrige mas apenas expressa o típico tique universitário de alardear erudição e rigor «científico» de modo a impor de imediato ao interlocutor o estigma da ignorância e, consequentemente, a sua indignidade de dialogar num mesmo plano.
Acto imediato, quando não se entende o que o interlocutor afirma, nem esforço algum se faz para compreender, tanto mais quanto, estigmatizado já com o véu da ignorância, digno não é já senão do mais completo menospreza e desdém.
(Ao Miguel Bruno Duarte, não sendo em rigor um universitário, não o farei passar pela indelicadeza de lhe explicar o paralelismo com a biologia)
Essa típica atitude universitária é, de facto, tudo o que há de pior na instituição porquanto procede e resulta sempre na «cousificação do pensamento», para usar a expressão consagrada de Leonardo Coimbra.
Na verdade, obcecados pelo instituto do exame, os universitários vivem no pavor de serem apanhados em falta, sobrevalorizando sempre o pensamento pensado sobre o pensamento em acto.
Muitas, fortes e antigas justificações haverá para se ter chegado a tal situação e tal atitude mas, independentemente dessas mesmas justificações, hoje, quanto se verifica na Universidade é a incapacidade de ver e valorizar o erro luminoso em detrimento do acerto acéfalo.
Como indivíduo, ao homem cumpre-lhe pensar correndo o risco de errar e é sempre preferível errar de moto próprio do que acertar por mérito alheio, preceito que a Universidade não partilha e de forma alguma aceita. E é exactamente este, na nossa perspectiva, o mais grave pecado da Universidade, todos conduzindo, a pouco e pouco, a uma espécie de psitacismo e à negação da individualidade ou capacidade real de individuação.
Não menos típica atitude universitária é igualmente o gosto de se escudarem na citação avulsa e suporem que o convívio com grandes personalidades lhes confere uma especial autoridade derivada, como se autoridade alguma passível de ser alguma vez adquirida por mera osmose intelectual.
Agastado com a questão de Marx, já em plena fúria emocional, Miguel Bruno Duarte retoma em seguida, de forma extemporânea, uma questão aqui aflorada há meses atrás, classificando-a de «gracinha».
Admitindo que «gracinha» aqui assuma o significado de brincadeira ou brincadeirazinha, impõe-se esclarecer que sobre um assunto de tão alta importância como a sua afirmação, «na esteira» de F. Hayek, segundo a qual, «sem liberdade económica não poderá haver liberdade individual e política», não só não há brincadeira ou bricadeirazinha possível como pela seriedade da questão se justifica inclusive que mais voltemos a dizer.
A liberdade é princípio, Como princípio que é, não depende de nada e muito menos da liberdade económica poderia ou poderá alguma vez dependente quedar. A liberdade é o próprio espírito e, como tal, radica no pensamento.
Compreendemos a afirmação de Hayek mas importa não confundir nunca os distintos planos da realidade.
Miguel Bruno Duarte está muito certo quando se refere à Universidade como «a poderosa organização que nos informa e modela a todos», deduzindo, «por melhor que as pessoas sejam, queiram ser ou até aparentem ser, não podem escapar ao brutal e terrível condicionamento ideológico de que a Universidade é o agente primeiro por excelência»
É este, ou era este, o único ponto, ponto crucial, sem dúvida, mas único ponto de verdadeiro e sério desacordo entre ambos. Ou seja, para nós, o indivíduo tem sempre a capacidade de se libertar, pelo pensamento, de todo o mal, por maior que seja, imposto pela Universidade. Para o Miguel Bruno Duarte, tal não é, tendencialmente, possível.
Aceitar a incapacidade de o indivíduo se libertar, pelo pensamento, é admitir tudo o que há de mais contrário à Filosofia Portuguesa, se assim podemos dizer, um vez não poder deixar de significar também, e consequentemente, subsumir a individualidade ao condicionamento externo, destituindo o pensamento de todo o seu real valor operativo ou iniciático.
Não discordamos igualmente quando Miguel Bruno Duarte afirma não olhar a Universidade às pessoas (de um ponto de vista filosófico afigura-se-me mais aconselhável a expressão indivíduo, mas isso aqui é pouco relevante), nem, muito menos, criar as condições para as fazer pensar. Porém, já não acompanhamos integralmente por incapacidade de compreender o seu inteiro alcance, quando afirma «É um instrumento do mal a que até os melhores fecham os olhos para sobreviverem».
Que a Universidade seja ou se constitua, múltiplas vezes, como um instrumento do mal, não duvidamos, mas que o seja absolutamente, já colocamos as nossas reticências.
Como diria Álvaro Ribeiro, cuja leitura Miguel Bruno Duarte teve a amabilidade de nos sugerir: «Compete à história da filosofia mostrar que a antitética do mal ao bem, não já como valores ou predicados, mas como substâncias e entes, tem sido e continua a ser uma das doutrinas mais pervertedoras da inteligência humana e causadora dos conflitos sociais».
Se, como o própria Miguel Duarte Bruno reconhece, «a Universidade não é uma entidade metafísica a pairar algures, pois ela é sobretudo o que os homens dela fazem, cada um deles em particular e de forma bastante concreta», admitindo nós que, pelo pensamento, qualquer indivíduo se pode libertar, sem exclusão dos universitários, não podemos também deixar de admitir que, pelo menos algumas vezes, a Universidade não seja necessariamente instrumento do mal, tanto quanto os mesmos universitários não sejam, por essência, entes malignos.
Quanto «a quem fecha os olhos», não podemos deixar de concordar em abstracto, mas apenas isso, uma vez ser sempre, por definição, condenável fechar os olhos ao mal, por interesse ou benefício próprios. Mas apenas isso.
Para além disso, temos, naturalmente, simpatia e respeito por todas as muitas agruras vividas por Miguel Bruno Duarte no mundo da Universidade mas, com fraqueza, mais nos importa quanto pensa sobre o sofrimento passado do que a descrição do sofrimento propriamente dito.
Não temos grandes ilusões sobre mudar a Universidade, a actual Universidade, seja por dentro seja por fora. Por isso mesmo afirmamos também como única estratégia exigir, de um ponto de vista político, a liberdade de ensinar e a liberdade de aprender, extinguindo os actuais Ministérios da Educação e da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
Não é uma «grande estratégia», é uma «pequena estratégia», uma forma de, a pouco e pouco, ir tornando consciente o disparate da existência de um Ministério como o Ministério da Educação e de um Ministério como o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Uma «pequena estratégia», uma forma de ir tornando consciente que, a par da liberdade de ensino, ou talvez mais até do que a liberdade de ensino, importa a liberdade de aprender.
Ninguém irá dar nada de mão beijada? Evidentemente que não mas se a Universidade não é reformável por fora nem reformável por dentro, sempre se nos afigura uma «pequena estratégia» justificável e com sentido. Tão só isso, nada mais, ou tanto mais quanto, em boa verdade, o problema da Educação que estamos hoje a viver, ultrapassa em muito a própria Universidade, o que importa não deixar de ter igualmente em vista, mesmo quando se entenda que a Universidade, dominando como domina actualmente tudo e todos, de algum modo, de si faz depender a superação desse problema. Mas importa não tratar o problema da Educação como uma questão corporativa com a Universidade mas como um verdadeiro problema político, tal como é.
Talvez se justifique aqui recordar as palavras de Ferreira Deusdado já em finais do já longínquo século XIX: «A educação do Estado não pode fazer nem bons mestres nem bons sacerdotes. Pode todavia fazer bons soldados como outrora fez a dura e despótica república da Lacedemónia, e pode fazer legiões de livres-pensadores, educando-os no fanatismo anti-religioso, como está fazendo hodiernamente a tirânica e dissolvente república francesa. A educação religiosa, a educação moral e ainda o ensino geral intelectivo pertencem aos pais, é um direito sagrado do pátrio poder... Nós, povos latinos, arvoramos deploravelmente o Estado em panaceia, crendo-o atalaia da vida contra as hostilidades da morte. Em matéria ensinante, ao Estado pertence unicamente o ensino profissional ou técnico, como as escolas de guerra, marinha, etc., que não influem na íntima formação moral do homem.»
Ferreira Deusdado, uma figura igualmente completamente esquecida como, não por acaso, sucede a todos quantos representam a verdadeira tradição nacional, escrevia ainda num outro artigo, «Ensino Livre Perante o Estado», na Revista de Ensino e Educação: «A moral sem religião é uma quimera; ora, o ensino da moral, ministrado pelo Estado, não pode, segundo publicista modernos, ser religioso, porque então fere a liberdade de consciência dos ateus e dos que professam uma fé diferente da do Estado», interrogando, a determinado passo, «Qual o fim dum governo inteligente em matéria de instrução pública? É educar o povo para que por si próprio se vá habituando a esperar tudo da sua iniciativa e não do poder central».
Também podemos dizer que, mais de um século transcorrido, as mesmas palavras aplicam-se, continuam a aplicar-se, ipsis verbis, à questão da Educação. Afinal, os erros do passado persistem tanto quanto persistem os mesmos nefastos propósitos de escravização dos povos.
Em nome da quimérica, ateísta e criminosa igualdade, de uma mesma Educação para todos, para todos tornar e transformar em venerandos e obrigados servidores de um mesmo omnipotente Estado, sobre a Universidade, como afirmámos no primeiro comentário que originou a fúria emocional de Miguel Bruno Duarte, a mais terrível instituição de activa desnacionalização e militante anti-patriotismo da nossa actualidade, não temos quaisquer ilusões.
O que entendemos é que, parafraseando Jung quando se referia aos pais e às suas preocupações com a educação dos filhos, nem a Universidade poderá alguma vez fazer todo o bem que alguns imaginam nem todo mal que muitos de nós tememos. E mais do que isso, cremos absolutamente na séria, profunda e indestrutível capacidade de individuação dos portugueses, contra a qual nem mesmo a poderosa Universidade capacidade terá de contrariar.
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